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segunda-feira, 29 de junho de 2020

JÁ FUI CAÇADOR DE SONHOS

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    Sinto saudades dos meus pesadelos originais. Das aranhas intangíveis, do mar de anzóis, dos monstros perseguidores, dos diabos antropomórficos, das quedas abissais. Esses eram fantásticos, cinematográficos. Vinham o terror, o susto, então o despertar e um subsequente sorriso feito de adrenalina e endorfina. Já os de hoje são tão banais, tão novela das oito e, por isso mesmo, tão fatigantes e punitivos… Será que a vida vai apodrecendo até nos pesadelos? Ou perdeu-se mesmo foi a minha capacidade inconsciente de ser original?
    Já fui um caçador de sonhos. No redormir, pelejava com os meus labirintos de além por encontrar nem que fosse um rastro, uma sobra de mim e dos meus vilões de havia pouco. Tive pouquíssimo sucesso nessas empresas. Sonhos são criaturas de vento e fumo, desprovidas de fidelidade e teimosia. Pesadelos, então! São como assaltantes de alma, que levam a paz e deixam a aventura no lugar. Mesmo nessas caçadas exitosas, não conseguia capturar a presa inteira, em perfeito estado. Isso se dava, acredito eu, porque não deve ter muita graça para uma onça fingir que é um peba e enfiar-se terra adentro para ela mesma dormir o seu sono onírico. Caçadora é ela, sempre foi, não eu, nunca eu! Mas, aqui e ali, um sonho deixava-se pegar pelo rabo e corria de novo comigo pela mágica universal da criança que todos nós voltamos a ser quando os caçamos.
    Hoje, sonhar parece ser só algo que acontece, e ter pesadelos não deixa mais a sombra corsária do náufrago resgatado nem a angústia azul-celeste do fugitivo em liberdade. Também é só algo que acontece, arrancando a paz e deixando um buraco prenhe de perguntas renegadas. E a alma, violada, não quer nunca mais dormir. E o espírito, vigilante, de faca na mão, com sangue nos olhos, do lado de fora da casa do corpo, espera. O dia inteiro, espera, até que o dia, esse fascículo rude da vida, insípido como um chiclete frio e mastigado, traga outra vez o acontecimento do sono e vença.
    Não busquei nem fui buscado. Apenas aconteceu. Não tem nenhuma glória o tropeçar em alimento morto, mas come-se, digere-se e espera-se que, dentre o capim seco das primeiras horas, ressurja a caverna de Grenouille, e o meu mundo de aromas me ascenda novamente à selva lisérgica onde minha alma volte a ser das feras a amante medieval, expectante, apavorada e gozosa na torre do castelo.

29/06/20

sexta-feira, 12 de junho de 2020

TOLERÂNCIA


    Sempre odiei o verbo “tolerar”. Oriundo do latim tolěrare (suportar, aguentar), e este, do tollere (levantar), o verbo “tolerar” sobrecarrega o seu objeto direto com a semântica odiosa do erro, da incorreção, da ausência de enquadramento, e o seu sujeito, com a perigosíssima posição de juiz paternalista detentor do poder da “tolerância”, substantivo ainda pior que o verbo. Essas palavras são exemplos tanto da hipocrisia quanto dos preconceitos estruturados na língua e, consequentemente, na cultura (pois a primeira antecede a segunda como causa desta). Pessoas, sexualidades, religiões, etnias, culturas não devem ser “toleradas”, mas sim legitimadas como soberanas em suas singularidades. Somente assim, na pluralidade legítima, poderá haver um legítimo Estado democrático de direito, pois o “tolerante” nada mais é do que um hipócrita com uma casa cheia de tapetes sob os quais apodrecem os esqueletos de seus preconceitos.

09/06/20

terça-feira, 9 de junho de 2020

MADERA


Aunque nadie lo sepa,
lo que dentro de mi canta
llena los espacios
prohibidos a quienes no soy,
donde hay un mar de espíritus bailantes
y todo el sentimiento del mundo.

Sin embargo, los de fuera
intentan callarme
incluso el silencio.

A ellos, les canto
que soy yo mismo una canción,
que reverbero en los huecos donde no estoy
con todas las voces en coro
de aquellos que, como yo,
son madera que,
en el instrumento más precioso
y ante el fuego del infierno,
canta.

09/06/20

ROUPA DE SAIR

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de tanto mudar a roupa
de sair
fiz que o domingo passasse
que todos os dias fossem a experimentação
teórica apenas
da rua e do mundo

na agonia da nudez
é que vivia
e o entra-e-sai n(d)os tecidos
polia a pele
para um sol que nunca me viu

09/06/20