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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

LINGUAJOSIDADES

     Tem mistério suficiente na língua do povo pra encher um ror de gramática. O espaço entre o que se diz, o que se imagina que se diz, o que se imagina que o outro pensa sobre o que se diz, o que se imagina de si enquanto diz… Haja três-pontinhos! “Avia!”, dizia minha mãe me apressando. Chamar “avia” de interjeição é chamar minha mãe de organismo pluricelular. Ali tinha uma interseção de tudo que é materno, portanto causado por mim, filho. Tinha medo, raiva, afeto, dúvida, educação. Tinha o que só nós, na nossa idiossincrasia linguística, sabíamos. Chamar o “de’stá” cearense de “deixa estar” sincopado-apocopado é usar um microscópio pra olhar a Lua. Temos quase um dialeto de palavras-ônibus, uma frota, uma malha viária apinhada de quer-dizeres, de espaços abertos a interpretações imediatas e certeiras. Só a intenção do pingo já é um i.
     Numa viagem de acampamento há umas décadas, aconteceu uma coisa interessante. Um pescador com quem fizemos amizade, chamado Cai-Bala, tava indo pescar camarão no mangue e levava um jererê, como fui acostumado desde criança a chamar. Eu pescava com meu pai, e era assim que se chamava aquele instrumento no nosso universo linguístico. Pois bem!, bastou que eu usasse o timbre fechado nas vogais pra que o Cai-Bala sapecasse de volta: “é jereré, pau na roda!” Pronto! Bastou aquilo pra que tudo que eu sabia sobre pescaria (que era menos que o que ele sabia, óbvio) virasse riso escarnecedor. O pior é que o Houaiss registra as duas formas, mas quem quer saber! Lá era aquilo, e pronto! “Ora, mas tá!”, como diria meu pai, o dono da palavra é o povo, é quem faz dela ferramenta.
     É difícil o ofício de ensinar língua portuguesa. É como advogar em defesa de uma ré confessa.
     — Ela é linda, é limpinha, cheira bem… mas tem esqueletos no armário.
     Alvíssaras (eita, piula!) que os linguistas incrementaram as gramáticas com as variações linguísticas há algum tempo já, caso contrário eu seria um terrorista gramatical, sempre sabotando a fixidez hipócrita das regras. Entretanto, é linda sim, ainda que nada limpinha, nossa língua, e é tudo que temos como fator de integração nos extramuros das variações. É gostoso e desforrado ensinar “isso sim, e isso também”, em vez do maniqueísmo da Tia Amélia (que Deus a tenha, e, se ainda não tiver, que a tenha em breve), segundo a qual eu era burro por achar, aos onze anos, que substantivo era uma coisa. Coisaram bastante com o ensino no início dos anos 80, era a ditadura deixando de coisar, mas ainda querendo, era a Educação Moral e Cívica e a OSPB coisando a História, a Filosofia e a Sociologia, e era a Tia Amélia coisificando os alunos em coisa boa e coisa ruim (eu não gostava muito de fazer parte do primeiro grupo). Acho que era falta de coisar da parte dela mesmo, além do racismo cintilando por trás daqueles olhos azuis.
     Acho que a linguagem é muito mais do que uma roupa que se veste conforme a ocasião, como costumo simplificar aos meus alunos. A linguagem é uma grande parte da cadeia do DNA social de um povo mutante e adaptável, melhor exemplo antropológico do darwinismo. Não se muda de roupa linguística; muda-se de pele, de estrutura óssea, de espécie, de estado físico da matéria. E não se enganem, não!: de mansa, não tem nem o rastro. É subversiva até o talo. Ridiculariza-se a todo e quanto, desdiz-se, reinventa-se, dissimula-se, envenena-se, renasce. Não é à toa que é substantivo feminino, abstrato e comum, comum como coisa, palavra linda que a Tia Amélia, sem querer ser, era, mas de um jeito tão feio que era mais coisado que cantiga de anum.

13/02/19

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