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quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

ESTRELAS DE NATAL

Estrelas-do-mar
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    É mais que compreensível a aversão ao Natal, assim como a todas as datas aniversárias. Há nelas um compromisso acordado por outros de que, compulsoriamente, os sentimentos devem ser sentidos e convertidos em pensamentos, e estes devem-se converter em interações, e estas, em autenticidade social.
    Desde as vésperas, já se força uma troca do eu natural ― este que se usa ordinariamente com os outros — por um alheio a qualquer naturalidade. Salvas as óbvias exceções, fala-se diariamente com as pessoas por conveniência, por contrato ou por afeto, e isso as situa nas agências e nas circunstâncias da vida. Dependendo de como funcionaram os traumas na socialização de cada um, essas interações ocupam lugares de cores e tamanhos bem distintos, e mesmo o desconforto de algumas delas se enquadra no que é a verdade de cada indivíduo, e isso tudo está muito bem.
    Porém, à chegada do Natal, que nem natalício é de veras, que nem relativo ao aniversariante também o é, colonizam-se os espíritos por um povo completamente estranho, estrangeiros de seus corpos, conduzindo estes a paródias chapa-branca dos que neles habitavam no dia anterior.
    Assim amputados, resta aos espíritos ver o outro, o incorpóreo, fraudar as verdades de que são feitos, em nome de estabelecimentos de sentimentos e ações pré-fabricados, importados, esterilizados.
    As redes sociais agravaram a tortura. Antes delas, podiam-se as pessoas esconder, fugir, sumir e reaparecer constrangidas, ou não, após as roedeiras dos ossos dos perus. Hoje, elas tornaram o escape uma ofensa ainda maior ao grupo mais solidário aos Jingle Bells. A vida virtual, o nosso presente 1984, tornou inviável a existência, ou, pelo menos, uma parte mínima, saudável, dela, apartada das agregações humanas. Nunca a solitude foi tão mal vista nem a individualidade tão ofensiva. Há sempre, ali pelas 22h, mensagens, videochamadas, ligações que instam o pobre escapista à reintegração às ocupações “festivas”, empurrando-lhe olhos, ouvidos e pele adentro um espírito que não é seu, ou melhor: que se escolheu não acolher.
    Todos os anos, a esta época, apinham-se picos de pressão arterial e de ansiedade à mera lembrança do estorvo que é não poder escapar ― exceto aos afortunados prévia ou geograficamente ilhados — dos assaltos, das invasões e dos sequestros a suas individualidades. Como consequência desse ultraje, assomam-se os ataques de pânico social, o surgimento e a potencialização da depressão e as violências autocometidas, que, por ocasião do “aniversariante”, são julgadas como consequências atribuídas à rejeição d’Este.
    Tenho muita pena de mim mesmo neste período do ano. Mesmo este texto, escrito tensionado como um arco de serra, requer a minha piedade. Nada em mim é como deveria ser. Não há espaço nesta vida, sob a qual tive pouquíssimo controle, para a manifestação do que poderia vir a ser o “meu” Natal, e acho que também não o há na vida dos incontáveis reféns de um zeitgeist tão tirânico e invencível.
    Resta a mim ― e acredito que a esses outros, também — a submersão desobediente num fundo inegociável do espírito. Daqui (ou de lá), como patéticos escafandristas, caminhamos com o peso das botas de aço no leito de nós mesmos, esperando contrafeitos a passagem da tempestade, dos trenós e das orações hipócritas que fustigam a linha d’água. No entanto, aqui, também há estrelas. Vivas e rudes, belas em sua natureza de autorregeneração, elas são capazes de nos lembrar de nossa íntima verdade: mais importante que nascer (e renascer) é Ser.

24/12/25

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