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sexta-feira, 9 de abril de 2021

OS PARDAIS E O FIM DO MUNDO

 
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    Ultimamente, tenho visto pouquíssimos pardais. Antes, eram onipresentes. Tudo bem, entende-se a ausência deles no meu quintal, eu tenho seis gatos. Mas as rolinhas, os bem-te-vis e os beija-flores ainda estão lá, mesmo que mais cautelosos após alguns óbitos; os morcegos, também, farfalhando a noite em relâmpagos negros. Então, onde eles estão?
    De todos os pássaros urbanos, o pardal sempre me infligiu lições, por exemplo: ele nunca se habituou ao homem. Chega um, foge o outro. Nesse quesito, difere do pombo e da hamburguesa, além do qual, há o atenuante de ninguém nunca ter caçado, capturado ou comido um pardal — meninos de baladeiras, talvez, embora isso seja coisa de sertão, onde o alvo preferido são as avoantes, hoje, raras por causa disso. De vera, ninguém lhe dá a mínima. Nem migalhas, que estas se jogam nas praças columbinas. Mesmo assim, sem ser molestado, o pardal é de natureza arisca, mais que todos os outros com suas pixilingas: ao menor sinal de gente, põe-se em alerta e chispa voo se alguém se move.
    E agora, esta: somem! A ordem natural das coisas tem jeitos sutis de se queixar, antes de ignorar a criação e pôr-se a reinventar a vida. Esquentam uns célsius aqui, somem abelhas acolá, e pimba!, aparece o solo negro onde dormiam neves que se supunham eternas.
    Se o sumiço dos pardais é um sinal de uma nova enxaqueca divina, pegou-nos completamente desatentos. Escolhesse o Criador um bicho mais notável, mais midiático, como o elefante-africano ou o dragão-de-komodo, vá lá, a gente perceberia. Ou não? O mico-leão-dourado e a ararinha-azul que o digam.
    Desta vez, talvez o cansaço tenha sido maior, tenha sido demais. Talvez o limite de Deus tenha sido o “batismo” de Bolsonaro no Rio Jordão. Ou a Damares conclamando linchamentos morais contra o aborto legal de uma criança estuprada. Ou o Brazil como um todo, por que não? Somos um país que não merece mais pardais nem segundas chances. Talvez estejamos sendo o limite arbitrário entre os dilúvios, já que Deus parece descartar a criação com um desamor proporcional ao amor. Minha irmã costumava repetir o que os carismáticos lhe haviam ensinado: “da próxima vez, vai ser com fogo!”. Nisso, eles se assemelham bastante aos neopentecostais, já que a alucinação de ambas as congregações com o Juízo ultrapassa os parâmetros hollywoodianos, de Michael Bay para lá! Contudo, a nós, nordestinos, possa até fazer sentido: primeiro, ateia-se o aceiro; depois, revolve-se a terra nitrificada.
    Eu, de minha parte, acho que tanto Deus como os pardais acharam algo melhor a fazer. Longe daqui, destas sucessões de absurdos e horrores, da compra dos votos do centrão, das torturas e assassinatos institucionais, da extrema-direita, da FIESP, do apodrecimento do Sudeste, do (des)Governo genocida, enfim, bem longe da safadeza do Brazil, devem estar numa praça qualquer mais ou menos assim: Deus, com uma marmita de cordeiro ao vinho recém-devorada, arrotando satisfeito mais um mandamento; e os pardais, pinicando, festejando com o que Lhe cai das barbas galácticas. Aqui e ali, uma pontadinha de indigestão, uma peristalse, um deslocamento de flato e uma catinguinha Lhe recordam as terras onde já gorjearam os sabiás, para onde, em Seu nome, dirigiram-se os piores europeus imagináveis, em caravelas de progresso e evangelismo. Nada que uma abanada de mão divina não afaste e uma soneca digestiva não converta em bosta santa, adubo divino do barro primordial.

09/04/21

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