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domingo, 18 de abril de 2021

SETE ANOS DE SOLIDÃO

 
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    Sempre ensino aos meus alunos que se deve adaptar o princípio da alteridade ao texto. Imaginar o leitor é fundamental para estabelecer as premissas básicas do “diálogo”, e uma delas é a adaptação do que se tem a dizer nos planos da forma e do sentido àquele em cujas mãos o texto cairá. Contudo, não paro por aí. Intimamente, eu projeto a minha própria leitura ao momento do inédito da obra, ou até antes, quando ela não seria sequer possível. Recomendo essa experiência. Garanto que, no mínimo, ela é capaz de tornar filmes, livros, músicas que são absolutamente ordinários um entretenimento prazeroso. Com filmes, por exemplo, isso funciona, que é uma beleza! Vi Godzila vs. Kong e assumo que passei os primeiros minutos imaginando se não tinha nada melhor a fazer da minha vida, mas bastou me projetar no tempo até os primórdios do CGI e me vestir com os meus olhinhos de menino, que aquela lenga-lenga barulhenta se tornou um espetáculo sensorial, como um grandioso número circense. É verdade, aqui e ali, o adulto emergia e estragava a experiência, mas há que se dar um desconto: é um filme de dois babaus brincando de telequete. Quem não se diverte com isso cresceu demais, ao meu ver.
    No entanto, em alguns casos, esse ineditismo acontece de não precisar ser inventado, e, para minha sorte, foi isso que se deu com a obra de García Márquez. Ontem, fez sete anos que o colombiano de Aracataca, cidade que ele transformaria em continente, morreu. O primeiro livro que me veio às mãos foi logo o vencedor do Nobel de Literatura de 1982, Cem anos de solidão. Um dos livros mais traduzidos do mundo, ele teve a peculiaridade de ser um premiado bastante popular, o que fez a crítica questionar o seu valor literário posteriormente. Afinal, se o povão gostou, não pode ser tão bom assim, na cabeça erudita e ensebada da “elite” intelectual.
    O arrebatamento de que esse livro me vitimou foi desproporcional à minha própria capacidade de ser arrebatado, o que me causou a sensação de, muitas vezes, lutar por um ponto de equilíbrio numa ascensão espiralada, como se um rodamoinho me tragasse e me cuspisse, sem se importar onde ficavam o céu e o chão. Hoje, passados bem mais de vinte anos dessa primeira leitura — à qual se sucedeu bem uma dezena de outras — ainda não me arrisco a dizer que domei a voragem. Porém, entendi plenamente que era esse o objetivo de Gabo. A América Latina alegorizada em um pueblo chamado Macondo e o realismo mágico usado como caminho para a compreensão do homem imerso em sua história são, na minha opinião, os dois causadores principais dessa abdução do leitor de qualquer época, e é isso que ombreia García Márquez com Jorge Amado, com Saramago, com Cervantes, com Melville, com Homero. Os leitores desses homens sempre vão ser arrebatados e sempre se sentirão arremessados por furacões, sem o lastro do tempo e sequestrados por ciganos mágicos.
    Depois disso, li outras obras dele, poucas, reconheço, mas suficientes para me fazerem despertar em outras vidas, em outros lugares, tão meus como esta que vivo e este em que estou. Acredito que um grande escritor tem muito mais dos outros do que de si mesmo, é muito mais pessoas do que uma só. É capaz de prever vidas que nunca viveu e encantá-las, fazê-las reféns de si mesmo até que elas o sejam e, dessa forma, tornar-se imaterial, essencial, ubíquo em qualquer um que não padeça de insensibilidades.
    De verdade, isso me transformou. Escritores como Gabriel García Márquez, Clarice Lispector e os outros de que falei deixaram de ser pessoas simplesmente. São como uma música que vira intuição e sai num assobio sem que se pense mais nela, organicamente, misturada nos hábitos diários. Todos me habitam, todos sou eu um pouco: sou o patriarca gigantesco José Arcadio amarrado louco no tronco do castanheiro, sou a matriarca Úrsula aceitando estar morta porque assim lhe disseram por molecagem, sou o espectral Melquíades predizendo juízos finais. Sem eles, quem eu seria? O que teria sido feito da criança a quem o tempo roubou os brinquedos, mas manteve cruelmente os olhos?

18/04/21

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