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quinta-feira, 15 de abril de 2021

QUANDO UM CABA VIRA MANO, MORRE MAIS QUE UM CALANGO

 
A cidade piauiense de Lagoa do Barro recebe pela primeira vez transmissão de TV, e seriado Chaves é pioneiro (05/12/1993).
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    Quando é que uma palavra deixa de ser palavra e vira “regionalismo”? Veja bem, isto não é nada contra as variantes. Muitíssimo pelo contrário, eu defendo a legitimação desses territórios culturais que as palavras demarcam. Minha inquietação vem justamente da marginalização que os termos regionais sofrem até mesmo nos dicionários, quando estes assim os setorizam, enclausurando, consequentemente, o seu escopo. Sempre me pareceu incômoda a categoria “folclore” na cultura, por exemplo, começando pela inglesada etimológica: folk (povo) lore (instrução). Então Zeus engolir Métis (grávida dele mesmo) e ele próprio parir Atena (que já nasceu armadurada) pelo quengo (que foi aberto a machadadas pelo seu irmão Hefesto, depois de uma grande dor de cabeça daquele lá) é mitologia, mas deixar uma peinha de fumo para agradar a Comadre Fulozinha antes de entrar na mata para caçar é folclore? Mas, menino! Pois vem daí o meu ranço. Quando alguém usa “regional” ou folclórico” para descrever algo, pode reparar na via de mão dupla dessa valoração: de um lado, despertam-se o orgulho bairrista, a memória afetiva, a herança, o telurismo; de outro, é como um prêmio de consolação, um Grammy Latino, um Oscar de melhor filme estrangeiro. É dizer que lacraia é melhor que embuá, ou pior, que o certo é caracol, e aruá é “só” um regionalismo.
    A pior parte disso vem agora, nestes tempos em que “profissões” como coach, influencer ou youtuber afetam diretamente os falares identitários, a cultura que o discurso de um povo reflete. Mais uma vez, é preciso esclarecer: eu não sou contra aquilo que soma; sou contra, radicalmente, aquilo que substitui, sou contra aquilo que subtrai. É mais ou menos como um gênero musical novo. Há alguns poucos anos, o k-pop ultrapassou as barreiras geográficas e idiomáticas e ganhou o mundo, especialmente, o Brazil, que adora bajular uma novidade, principalmente, as estrangeiras. À época, eu vi um documentário sobre essa música pop sul-coreana e entendi a importância que ela tem naquele país, onde foi o veículo de uma renovação de costumes, um sopro de liberdade num cenário dominado pelo tradicionalismo e pela sem-gracice. Uma vez aqui, a meninada adorou, como adorou o Menudo nos anos 80, ou como, nos 60, o yeah, yeah, yeah! virou iê-iê-iê e apavorou os que veem diabo até na cruz. Até aí, tudo bem, porque é sempre bom ter uma coisa a mais como expressão de arte ou de entretenimento. O problema é que a mídia, que é um dos setores que mais destroem a cultura — principalmente, pelo esgotamento — suprimiu de certa forma boa parte do espaço destinado aos gêneros nacionais, o que deu aos kapopeiros a sensação de onipresença do BTS e das Blackpink, retirando deles outras possibilidades de expressão — muito mais legítimas — de seu comportamento. Ser jovem é foda. Superficialidade e profundidade são extremos em constante batalha pelos coraçõezinhos adolescentes, e isso é natural. Mas vamos pelo menos lutar em português, não é?
    Pois bem. Semelhante ao que acontece na música, a linguagem vem perdendo espaço (há muito tempo, eu sei) e, consequentemente, prestígio para modismos internos oriundos das capitais e de seu pseudocosmopolitismo, visto que, no Brazil (com z, mesmo!), isso significa arreganhar as pernas primeiro ao Sul-Maravilha e, depois, à gringalhada. Como consequência, a criançada de 5 a 45 anos daqui do Ceará, por exemplo, passou a usar “mano” em vez de “macho” ou “má”, e o “cê é louco, meu” vem minando o “aí dento”, que resiste bravamente, apesar de tudo. Até o tema melódico dos sotaques vem sendo alterado. Lembro que, há muitos anos, um radialista aqui de Fortaleza anunciou um evento no então Mucuripe Club, que reabrirá com o nome Mucuripe Music (pois é!), alterando a prosódia da palavra para “Múcuripe”, talvez para combinar com o “clâb”, que ele pronunciou britanicamente, como convém a qualquer locutor que se preze. Sem gringuismo, não há respaldo, não é? Pois então!
    Além disso, eu percebo que a “neutralização” (para não dizer descarte) do sotaque cearense aumenta proporcionalmente à classe social e à conta bancária do fortalezense. Parece que existem vários esqueletos no armário que cada aspirante a “aristocrata” — ou, de fato, membro de alguma oligarquia — tenta desesperadamente esconder em cada s sibilado antes de t e d, em cada escolha vocabular artificial ou estrangeira, em cada amnésia idiomática afetada diante do constrangimento da palavra inconvenientemente ouvida (“o que é quenga?”). Eles forçam por se perder, por se desconectar. Sei que não se deve nunca ter pena de quem tem dinheiro, mas é digna de piedade a pessoa que não tem povo, que não tem gente, que só se assemelha pelos badulaques dispostos impecáveis no aparador, validando-os como “cidadãos do mundo”. Nada contra os cacarecos, que também tenho esses fetiches, e os considero um materialismo saudável, mas me parece que, sem eles, aquelas pessoas não são capazes de dizer quem são da mesma forma como fazemos meramente chupando uma ciriguela.
    Também é enorme a quantidade de Felipes Netos, de RezendeEvils, de Felipes Castanharis, de Kéferas Buchmanns, de Harus Jigglies, de Coccielos, todos eles misturados, que eu vejo no jeito novo de falar o cearês. O mais curioso é que o Whindersson Nunes, que é o youtuber mais bem-sucedido do Brazil hoje e é piauiense, não influencia a fala de ninguém. É o complexo nelsonrodriguesano de vira-lata, só que de um jeito mais hipócrita: todos adoram o pé-duro amarelo, mas ele nunca vai latir tão bem como um weimaraner.
    Eu me preocupo de verdade é com aquilo que se pode perder. Sou da capital, mas meu pai me deu o melhor presente que podia na minha formação de caráter, que foi o levar-me constantemente ao sertão e proporcionar que o sertão me levasse aonde ele não podia, que era a riqueza silenciosa de sua cultura. Sei o que é um jirau porque foi num que emborquei a caneca de alumínio para secar, no terreiro branco da casa de Dona Zefinha, em Pacajus. Sei o que são um puçá, um jereré, um landuá, uma sovela, um samburá, um mão-no-olho, porque tudo isso fez parte do meu universo de pescaria nos interiores e litorais daqui. Sei que pão de milho não é um pão, porque moí os caroços secos no quintal da casa de meus primos em São Miguel, hoje, Itaitinga. Sei o que é um quixó, porque meu pai me ensinou a fazer um para matar os ratos do quintal. Sei a diferença entre a rasga-mortalha e o caburé, porque ouvi os dois piarem, à noite e de dia, e aprendi ali o misticismo sertanejo, os malassombros e as visagens que ali, na Serra da Boa Vista, no roçado dos capuchos de algodão, tornaram-se meus como se tivessem nascido comigo. Sei, enfim, de um pouco da riqueza de minha terra, de minha gente, que me chegou nas palavras, nos cantares, nos sotaques tão gostosos quanto enciclopédicos, e tudo isso significa que eu pertenço a um lugar, a um povo, a uma beleza imaterial que se vivencia quando, simplesmente, se fala. Nada disso nunca foi “regional”, nunca foi “folclórico”, mas sim fui eu com os meus, foi vivência, foi natural como as palavras e as suas almas devem ser. Será que esse chão sobreviverá nos meus filhos? Será que essa pertença que a linguagem agrega ao falante vai enraizá-los em si mesmos, situando-os no mundo e dando-lhes a perspectiva de que sua fala é seu lar? Será que eles vão sobreviver a esse autoetnocídio financiado a dólar? Não sei, realmente. A vida é a cada dia mais “de plástico”, e o manual de instruções vem impresso em mandarim.

15/04/21

2 comentários:

Prof. Victor Bessa disse...

Concordo e luto contra isso todos os dias. Mas esse Fenômeno não é novo no Brazil, quando a "invasão" da Família Real Portuguesa em 1808 também tivemos esses modimos na linguagem e costumes no início do séc XIX e foi numa crescente tal que as "pessoas chiques e intelectuais" sempre no seu falar jogavam palavras francesas, pois demonstravam um certo nível de cultura elevada.... Até parece, nessa época 90% população não sabia ler e escrever. A grande tentativa de elevar a língua nativa foi na semana de arte moderna de 1922 que veio aniquilar esse modismo.... "Amém" e aí veio a 2 Guerra Mundial e o modismo agora seria o inglês, perdurando até hoje de formas diferentes. Na década de 90 o Banco do Brasil tinha todas suas transações em inglês espalhadas com adesivos em suas agências, se as pessoas mal saber o português e operar as máquinas...imagine ler em inglês. Com minha atual esposa veio um filho de sete anos que logicamente assistia Youtubers e tinha em suas falas esses vícios supracitados. Achei muito doido, mas coloquei na minha cabeça ia mudar esses vícios de linguagem. Conseguimos, somos dois professores aqui em casa e um aluno, não foi fácil, ele assisti a outros mas não erra na escrita e nem na linguagem. Caso raro, somos um país de invasões, golpes políticos e de vícios linguísticos.

Anônimo disse...

Excelente texto, uma talagada na fonte do nosso regionalismo...