Ali pela segunda metade da década de 1980, meu pai trouxe de Pitombeiras uns cortes de galhos de pé-de-algodão que pegaram fácil na calçada da minha casa e na dos meus vizinhos de quarteirão. Aqui, que era pelado de árvores, floriu de amarelo em pouco mais de um ano, de um lado e de outro da rua, e eu guardo esse orgulho besta de termos sido os traficantes desse arborecer. Nessa época, saíamos (a pivetada) de casa em casa com pau e lata pra colher jambos. Os que não comíamos viravam munição pra batalhas campais que deixavam até a alma roxa. E quando estes acabavam, valíamo-nos dos torrões de barro vermelho seco que se encontravam em toda parte devido às obras de saneamento na rua. Era uma época de roubar frutas, guerrear de molecagem e despetalar o amarelo dos algodoeiros. Debaixo deles, sentávamos à noite e de dia, nas calçadas que ninguém nunca mais terá, e éramos aquilo que nunca mais seremos. E eu sabia intimamente que não poderia ser mais feliz.
Foto tirada em 31 de março, num meio-dia de tempestade, numa cidade sem graça, sem frutas e sem molecagem. Ainda tentei carregá-la no bolsinho da alça da mochila, onde guardo o frasco de álcool em gel, pelo máximo que pude, mas ela não aceitou essa antinaturalidade e descoroou-se, jogando-se na calçada mais estéril possível, defronte a uma farmácia de conveniência no Meireles, salpicada aqui e ali da mais polimerosa artificialidade. Só pude pensar que pelo menos as flores ainda resistem com suas delicadezas, apesar de havermos perdido as nossas.
01/04/21

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sexta-feira, 2 de abril de 2021
FLOR DE ALGODÃO
Foto: Fernando de Souza
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