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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

GIGOT

Gigot (Gene Kelly, 1962)

      Fico me perguntando se a vida adulta consiste em arrependimentos e tentativas de fazer as pazes com a criança que se foi. E em inventar nos caminhos adiante — não se pode voltar — tesouros artificiais que substituam os verdadeiros, os que caíram e quebraram, os que foram varridos com o lixo da casa, os que se perderam nesse afunilamento que é envelhecer.
    Era a primeira metade dos anos 80, a “década perdida”, quando nós éramos “programados a receber o que vocês nos empurraram com os enlatados dos USA, de 9 às 6”. A diferença é que era madrugada. Minha mãe tinha esse hábito dos solitários, o de ver filmes enquanto todos dormiam. Valia a pena ser solitário junto dela. Minha mãe calava a revolta e as frustrações da vida simplificada no seu dia-a-dia de dona de casa cuja promessa de felicidade fora substituída pela servidão e pelo abandono matrimoniado. Em suas tentativas de conciliação inúteis, ensinou-me a calar também. Aprendi a revolta que vive nas covas do silêncio. Mas também foi nessa época que comecei a aprender o silêncio, a imaginação e as paixões que vivem dentro das estórias que começara a partilhar com ela na frente da tevê. Eram tantos filmes, e tão bons, tão ilimitados! Não havia quase nenhuma restrição de conteúdo; víamos de tudo: tragédias, épicos, pornochanchadas, comédias pastelão. Devo à minha mãe esse amor ao Cinema que tenho hoje, ainda que bastante empoeirado e desanimado, essa capacidade de viver outras vidas que roubou da Literatura e da Música o meu espírito.
    Hoje, assisti novamente, depois de uns quarenta anos, a um pedaço tão bonito dessa minha infância, um filme tão triste, tão tocante e revoltante, tão lindo. Pensando bem agora, talvez tenha sido a minha primeira experiência com o desespero e o desalento diante da injustiça e da hipocrisia. Claro, uma experiência projetada. As reais vieram a cavalo, em seguida. O filme se chama Gigot. É uma produção lançada em 1962, um clássico que tem lugar na França e foi idealizado e protagonizado por Jackie Gleason, que também compôs as músicas temáticas, e dirigido lindamente por Gene Kelly. A personagem principal, que intitula a obra “perna” (de cordeiro, geralmente), em francês , é um homem mudo, gordo, enorme e extremamente bondoso, simples e gentil, ridicularizado por todos do seu bairro, os quais, em virtude de sua incapacidade de se impor, se aproveitam dele com uma condescendência tardia, mas nunca suficiente para se tornar uma piedade. Tomado por deficiente mental, é envolvido numa cadência de desventuras que lembram as de Quasímodo, de O corcunda de Notre Dame (William Dieterle, 1939) ao qual também assisti com minha mãe , porém com um falso final trágico, em que ele é dado como morto, e o seu gorro, a sua única peça de roupa encontrada após uma perseguição cruel, é enterrada pela mesma multidão que o perseguia furiosa. Era típico dos roteiros estadunidenses dessa época tratar os dramas e as tragédias como intensidades que deveriam sempre ser quebradas, ou seja, havia alívios cômicos constantes durante as narrativas para que as obras, ao final, entretivessem mais do que chocassem o público. Isso sempre me incomodou. Filmes como Papillon (Franklin J. Schaffner, 1973), Os três mosqueteiros (George Sidney, 1948) e A ponte do Rio Kwai (David Lean, 1957), por exemplo, têm momentos de comédia salpicados na sua cadência, o que hoje cansa, desestimula e até atrapalha a imersão na trama principal. Contudo, a fusão do entretenimento à arte, o conservadorismo cultural e o excesso de musicalização e teatralização eram bastante normais para os espectadores dos cinemas, que talvez não digerissem bem uma obra mais densa sem esses “enquadramentos”, e isso poderia até significar o fracasso financeiro da obra.
    Por isso, é necessário sempre tentar, pelo menos, adaptar a percepção à do público-alvo da época do lançamento ou da publicação de qualquer obra artística. Se Gigot fosse feito hoje, respeitando-se o drama e a reflexão que ele visa promover, encontraria um cinéfilo diferente do de 62 neste aspecto: ele poderia apreciar a obra se ela se desvestisse da suavização e se apresentasse crua, amarga, naturalista, mais próxima da natureza humana e de suas patologias. Reconheço que o grande charme do filme não se perde, mas eu sou bastante suspeito nesta crítica, já que assisti a ele menos de 20 anos após o seu lançamento, e ainda era bastante usual se manterem aqueles recursos narrativos no início dos anos 80. Era uma transição. Star wars era uma grande novidade, e todo mundo queria ter a BMX do E. T., contudo ainda se possuía a grande inocência de se vibrar com os filmes de kung fu e de se pôr febril e amarelo com Emanuelle. E é nesse caldo de experiências que se está a delícia da redescoberta das obras. É assim que quem é da minha idade consegue habitar ao mesmo tempo dois, três, vários corações: catamos de volta os olhinhos de nós-meninos e, de novo, podemos chorar com a mesma legitimidade original, com o mesmo espírito que os filmes ajudaram a construir, e essa emoção é o que o cinema tem de mais precioso a oferecer. Minha mãe, meu silêncio e o dela, meus tesouros, tudo se reencontra aqui, nesta cama, com este laptop no colo, num único corpo repleto de espíritos.

?/2020-02/2021

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