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terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O NOME DE DONA IRENE

Imagem digitalizada por Francisco Carlos.
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     Memória é, no meu caso, primariamente um negócio afetivo. Vejamos um exemplo. Estudei por pouco tempo numa escola que não existe mais, chamada XV de Novembro, quando muito criança, ali pelos 6, 7 anos, início dos anos 1980. A diretora se chamava Rita, minhas professoras eram Sônia e Cláudia. Meu melhor amigo era o Jairo. Eu era apaixonado por uma menina chamada Márcia. A zeladora era a Dona Irene, e o porteiro, o Seu Geraldo. Não lembro de me contarem, lembro porque lembro, lembro porque eu assimilava o mundo ao meu redor com o coração, com a imaginação, como deveria ser com toda criança. Em 2019, encerrei 10 anos de contrato de trabalho numa escola X, como professor de Português. Por esses 10 anos, eu convivi com algumas pessoas ótimas, outras, detestáveis, porém o meu afeto não me permitiu (ou não permite) lhes guardar devidamente os nomes. Preciso fazer um longo esforço de reconstituição de cenas para lembrar que a senhora da copa se chamava Lourdinha, por exemplo. No entanto, com um falecido porteiro — pai de um aluno meu muito querido, chamado Maurício —, que se chamava Seu Marcos, não tive sucesso; precisei da ajuda da Vivi, ex-colega de trabalho, que me corrigiu — achei que fosse Seu Mauro. Porque isso acontece, não sei; gostava igualmente dos dois. Mas a D. Irene, aquela do XV, que ficou uma vez esperando comigo sozinha na escola porque meu irmão Cláudio se esquecera de me buscar, está gravada permanentemente na minha memória. Já os nomes de muitos outros eram tão circunstanciais que eu precisava inquiri-los a terceiros, de cujos nomes, por sua vez, só me lembrava por sorte. Sorte, no sentido etimológico do radical: aleatoriedade. O afeto me permite recuperar-lhes os rostos, a camaradagem, ser-lhes solidário nos votos de boa-aventurança. Já seus nomes, estes se perderam na voragem sucessiva das coisas ordinárias dos dias iguais.
    Talvez, eu tenha me tornado um cínico, ou um escapista, ou um misantropo, ou uma espécie de sociopata, como sugeriu certa vez Dona Fátima, mãe do Hálinson e da Natália, esposa do Seu Messias, todos muito queridos meus. Conversávamos sempre com muita alegria, e, numa tarde, falando sobre esses “apagões” mnemônicos, eu tinha dito a ela que não conseguia me lembrar dos nomes de algumas ruas do meu próprio bairro nem de alguns dos meus amigos, muitos, de infância, até, e que me perdia com facilidade, por não gravar os caminhos. Ela me ouviu pacientemente, analiticamente. Ouviu como mãe. Respondeu como juíza. “Isso acontece porque você não se importa com nada”. Dona Fátima, com o pragmatismo de uma contadora — que ela é —, asseverou o encadeamento de palavras que, na minha autodefinição, ainda não eram sequer letras. Porém, lá estavam, epigrafadas: “ele não se importa com nada”.
    Como acertara D. Fátima… Ali, de certa forma, deram-se tanto uma epifania quanto uma libertação. Não levei a mal, muito pelo contrário. Eu tinha agora uma frase que me definia bem, e só quem vive a perturbação da busca constante sabe o quanto isso é difícil de se encontrar. Não era um problema meu de afeto, não era eu que não sabia sentir as pessoas, não era um aleijão sentimental. Era, isso sim, o oposto da posse. Era um olhar de transeunte permanente, de constante temporariedade, era a janela do ônibus com a vida em curso nas avenidas, ruas, calçadas, botecos, olhares, contatos. Tudo passando, tudo fugaz. Ou quase tudo. D. Irene, não. Ela, cabelo grisalho, vestido de chita, pés apressadinhos nas chinelas, fez mais que o seu trabalho quando outros negligenciaram os seus. Dona Irene, que já deve estar no céu das Irenes, junto à de Manuel Bandeira, é nome que não passa na janela. Fica sentada junto de mim, com todos os outros nomes que, sei lá por quê, me acompanham nesses ônibus circulares desta cidade provinciana que sou eu.

23/02/21

2 comentários:

Rafael Sousa disse...

Massa demais, cumpade! Vou usar em aulas!!!

particular disse...

É Fernando a década de 80 foi foda pra todo mundo, nesse época eu levei muita carreira do colégio por causa dos outros que eu não me dava bem e queriam me bater por causa que eu queria as vezes conversar com os professores. Mas naquele tempo era assim! Hoje vejo gente do meu tempo e esses não estudaram na mesma sala que eu, eu tinha mais contato com gente das séries mais acima que conversavam comigo. Os que estudavam comigo eu quase não tinha amizade eram todos esquisitos e só eu é que não conseguia fazer parte do grupo deles. A noite sonho com o colégio, vejo todos fardados correndo pelo colégio, mas não consigo ver os rotos. Naquela época andei nos outros colégio do Complexo XV de Novembro procurando com minha mãe o dono para poder ter a minha BolsaDoMEC e estudar sem pagar. Tinha vários colégio em Fortaleza, os que conheço foram o Albanisa Sarasate (Bairro BomSucesso), Marechal da Fonsenca entre Bom Sucesso e Granja Portugal; Um na Serrinha que não sei o nome, outro na Caucaia o Marechal Rondom, sendo maior de todos ali na região da Jurema e também andando perdido por ai achei outro no Quitino Cunha o único com três frentes. Depois que o governo federal acabou com as bolsa salário educação, foi o fim de muitos colégio aqui em Fortaleza, me da dó de ver uma escola fechada. Aqui próximo ao Frotinha da Parangaba existia uma escola que tinha até a 8a série, tinha piscina e dentista para os alunos. No colégio Eudoro Correia (escola polo) tinha 5 horários: Manha, Manha/Tarde, Tarde/Noite e Noite. Naquela época era bom de se estudar. Quando sai do Externado Coração de Maria que fazia parte do Complexo XV de Novembro, onde o dono tinha 15 colégios em Fortaleza sendo o ultimo no Bairro Bom Jardim próximo a Rua Maria Júlia. Vi e vejo a educação sendo acabada em Fortaleza, na escolas publica a poucos alunos, nos turno da Manhã, da tarde e muito menos no turno da Noite. Antes se identificava os aluno, os bairro de Fortaleza pelas fardas e colégio, hoje não conseguimos saber quem são e pra onde vão. Por isso que o Brasil tá nessa M****a, depois de 1985 o Brasil mudou e mudou logo a educação do País e vai piorar ainda mais a educação foi o começo. Lembrando que nas escolas públicas tinha o Tele_Ensino, ou seja um professor polivalente, manual de estudo e uma Televisão na sala de Aula para o aluno aprender pela TV. Hoje se tem Faculdade que oferta cursos EAD, Pós-EAD, são um bando de Faculdades Caça Niqueis. Sem contar a falta de emprego, saúde a educação e sem contar esta Pandemia. Na década de 90 começaram a atacar a Saúde, com retiradas de verbas e a terceirização de trabalho.