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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

DO SAPIOSSEXUAL AO BBB: O FETICHE PELA DIFERENÇA SUPRIMIU AS SEMELHANÇAS

 

    Pode-se dizer que a humanidade propriamente dita começou com a nomenclatura das coisas. E que ela se requintou quando essas coisas deixaram de ser coisas e passaram a ser o abstrato: medo, coragem, deuses, futuro. Contudo, há uma categoria de coisas intermediárias, com um pé em cada mundo — um se percebe com os cinco sentidos; outro se imagina e se adivinha. Aí estão a dor, a fome, o frio… e o sexo. Quando nos requintamos ainda mais, subdividimos as principais delas segundo critérios autoexcludentes: digno-indigno, moral-imoral, belo-feio. O sexo, esse, que nasce do desejo — e este, por sua vez, que se difere dos outros desejos por incluir em si o próprio ser desejoso em um estado de sensações muito específico, no qual não se separam egoísmo e altruísmo, dor e prazer, sublimação e objetificação —; esse sexo, que, por ser nascente no espírito humano, antecede e transcende o corpo e a própria ideia de corpo, visto que pode exigir adereços, ferramentas, ambientações, projeções — característica que faz dele a ação humana que mais ignora a realidade em função do imaginário —; esse sexo foi o fator, dentre todos os requintes aos quais a palavra imaginada submeteu as coisas que descreve, que mais retrocategorizou as pessoas, de forma que chegou ao ponto de ser formador de nações entre os povos: nessa, ficam aqueles que se relacionam com o gênero feminino cis; naquela, os que se relacionam com os dois gêneros que a cultura patriarcal determina como aceitáveis; naqueloutra, os que se relacionam com os gêneros trans; já ali, os que preferem os cis masculinos; acolá, os que aceitam qualquer gênero, contanto que se vistam de coelhinho rosa; e, por aí, vai, e tudo isso é muito natural.
    Não que eu esteja diminuindo a importância e a visibilidade das minorias, porque não estou. A sociedade está gravemente enferma de preconceitos e de violências oriundas das mais abjetas imbecilidades, e tudo isso deve ser combatido por meio, inicialmente, das exposições e das ações afirmativas; e, finalmente, da adaptação e da aplicação de leis que protejam totalmente quem sofre com a estupidez humana. Porém, midiaticamente, não está sendo feito assim. Parece aos influenciadores que a caricatura é o único rosto possível, e que é ao redor dela que se devem agregar os oprimidos.
    Estava lendo nesta manhã um artigo do El País sobre os sapiossexuais, matéria ilustrada por uma fotografia de Marilyn Monroe, que, sabemos, comeu o pão que o diabo amassou nas mãos dos que a desejaram, rejeitaram, abusaram e daqueles a quem ela própria o fez desde que era Norma Jean. Segundo o texto, a sapiossexualidade é a atração sexual lenta e condicionada à intelectualidade da pessoa, sexualidade essa que não considera as características físicas como prioridade e que, dada a oposição que as culturas modernas estabeleceram entre mente e corpo, até chega a desprezá-las totalmente. De pronto, vieram à memória as aulas de Introdução à Linguística, nas quais aprendi que existe para cada noção substantiva um conjunto de outras noções que a excluem, ou seja, uma coisa se categoriza por não ser outras coisas muito mais do que por ser o que é. Lembrei-me também de todos os meus relacionamentos e de mim neles. Houve uma enxurrada de pequenas epifanias, que logo se mostraram mais conclusões do que revelações: o que eu fui sexualmente sempre dependeu do que eram as minhas parceiras, e acredito que tenha sido assim também para elas. Nossas “falhas” sexuais não foram critérios de exclusão, mas pequenos obstáculos que, nesse e naquele caso, tornaram-se até gostosinhos na cama. Minha heterossexualidade ia se moldando ao que dava, ou não, prazer. Com uma, ela era romantiquinha, com musiquinha e frescurinha; com outra, era bruta e requeria cordas e cinturões; com aquela, baseava-se exclusivamente no corpo; com outra aquela, na voz e nos gemidos. Fiquei pensando em como nenhuma dessas atrações excluía as outras, em todas as pequenas transmutações de comportamento que nunca me foram inaceitáveis. Porém, o que mais me incomodou na leitura da matéria foi a relação que fiz entre ela e aquelas minhas aulas de substantivos: as nomenclaturas.
    Veja, como professor de Português, não sou nem posso ser contra a criação vocabular ou as metamorfoses semânticas. Elas são exigências dos requintes culturais, como já disse. Contudo, não me conformei com a redundância desse “sapiossexual”, no qual identifiquei a mim e a quase todo mundo que conheço. O pleonasmo é explicável: tanto nas minhas relações quanto nas dos meus amigos e conhecidos, eu verifico a mesma inclinação natural: escolhem-se as pessoas que se mostram mais interessantes intelectualmente, e isso significa que selecionamos quem admiramos dentro do escopo da nossa própria intelectualidade ou acima desta. Duvido muito — novamente, afirmo: falo de mim e dos que conheço — que alguém de qualquer sexualidade escolha para um relacionamento longo uma pessoa cujas inteligência, sagacidade, esperteza etc. não o atraiam. “Vem cá”, diria o enamorado em um teste que talvez nunca admitisse estar fazendo, “você não acha que se exagera muito nessas tribos comportamentais que as pessoas criam?”. Dependendo da resposta facial e verbal da moça, ele a classificaria — sim, todas as pessoas classificam umas às outras, essa é a vida real — e poderia escolher, dada a sua maturidade emocional, continuar, progredir, ou não. O caso é que, além de não haver na nomenclatura uma identificação clara
— como acontece com as outras semelhantes — de um grupo, escolher alguém com quem se identifica comportamental e intelectualmente é o usual, é o que sempre se fez. Não carece de uma nomenclatura isso. A não ser, é claro, que a investigação científica esteja bastante entediada, e a Sexologia resolva categorizar todas as nuanças, mesmo que sejam elas as mais óbvias e genéricas, da sexualidade humana.
    Acredito que o contrário, sim, é que deveria ser estudado e dissecado, e no escopo das parafilias: como se nomeia a atração patológica que se sente pelas pessoas mais imbecis? Não porque seja rara, pois não é. Gente que se simplifica e se submete à estupidez existe a rodo — aqui eu conjecturo, reconheço, mas que outra razão existe senão essa para que se transcenda essa parafilia para um fetiche institucional, e se passem a eleger estúpidos, idolatrá-los, tatuá-los no peito, mitificá-los? Ou vai você, caro leitor, dizer que não existem essas projeções daquilo ou daqueles que se desejam sexualmente para as representações sociais, tais como patrões, sacerdotes e políticos, nos quais se idealizam corpos e comportamentos, atitudes e passividades? Vai também dizer que não as faz?
    Portanto, eu, que me categorizei hoje um sapiossexual e que não sei em que isso me melhora — a não ser talvez numa exibição lexical irônica dessas que se fazem bêbado —, reconheço que falhamos enquanto pensadores, professores e cientistas numa espécie de superdicionarização do mundo. Parece que estamos mais preocupados em dar nome às coisas e em nos excluir pelas diferenças nas quais nos categorizamos que em nos unir em torno de causas coletivas urgentes. Ontem, por exemplo, votou-se pela aprovação da autonomia do Banco Central, a qual, sendo definitivamente estabelecida, vai tornar virtualmente impossível para o Estado a intervenção nos bancos e a regulação da economia em casos de crise. Mas o que importa isso diante da sexualidade dos concorrentes do Big Brother Brasil 21 — 21 anos, olha aí, millennial, já pode ser responsabilizado criminalmente (piada de tio) — e das tribalizações ideológicas em nichos que não agregam de fato aos seus integrantes mais que o fariam se estes se festejassem por suas semelhanças? Melhor, parece, são o circo e a guerra, ainda que não se tenham entendido até agora quais são a piada ou a causa.

11/02/21

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