Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

terça-feira, 16 de março de 2021

MARINHOS

Foto: Fernando Girotto (Icapuí - CE)  
(Clique na foto para ampliá-la e no nome do autor para acessar a página de origem.)

I

dentro das palavras, onde moram as coisas,
existem coisas ainda maiores
— o ignorado.

veja o mar, por exemplo.

dentro da palavra, ao lado do que é e sempre foi o mar,
existe outra coisa a que também chamo mar,
mas que, diferente daquele,
sobre-existe esvoaçante, muito além da água e do sal,
dos peixes e dos navios cheios de petróleo e armas.

é um mar feito de luz e de cabelos,
cuja água, onipresente sobre o corpo,
desdenha da superfície da terra.

nele, a vazante e a preamar
são pressentimentos,
tanto que rompem com a Lua
por padecerem de outros magnetismos,
por obedecerem a leis que se renovam
com a maré.

é um planeta submerso,
salpicado de ilhas cor de vento
e baías que nasceram já dançando
de uma eterna meninice,
de uma saudade mais antiga
do que o próprio objeto da saudade.

esse mar, que habita dentro da palavra mar,
não se vale de sua força
para urrar quem é à costa
nem se guarda aos faróis
como se os apagasse a naufrágios.

ele é manso e humano e anda sempre ao meu lado,
corre como um rio por onde quer que eu vá,
adiante de mim,
e dentro, na fome de que sinto falta,
na comida que nunca mais haverá.

ele é feito, assim, única e simplesmente
de tudo aquilo que zarpou
de todas as beiras de praia de minha vida.

II

se me perguntassem onde termina o mar
não saberia dizer
se na chuva que dele sobe
antes de chover
se no leito negro dos abismos
se na vela recolhida e enxuta
se no porto
ou se na aurora

se no casco, que lhe faz fronteira
se na costa, que a onda lambe
ou se na concha, malassombro de seu marulho

o mar
acho que termina
naquele casal que se beija
e bebe um do outro
a sua própria maresia

termina na areia
entre os dedos dos pés da criança
tragada pelo ralo do banheiro do apartamento

talvez no lixo escumado
talvez no sunglass do playboy
talvez na sempre enigmática
mise-en-scène do carnaval

o mar
acho que termina mesmo
no fundo do prato de plástico
no fundo da gelateria chic
no fundo mais profundo e estéril
do bairro mais nobre à beira-mar

16/03/21

Nenhum comentário: