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terça-feira, 12 de novembro de 2019

COLAR DE PÉROLAS


    — “A pérola é o câncer da ostra”, dizia para si mesmo àqueles dias.
    Bêbado de palavras, deixava voejarem os sentidos daquelas no fundo do seu mar fosco, poluído de guimbas, cacos de garrafas e roupas podres de suicidas.
    — “Não jogai pérolas aos porcos… Pérola, câncer, cancro, caranguejo, carcinoma… Ostra, ostracismo, óstraco, banimento, banner, exílio… Dias, aqueles dias…”, era esse o fluxo em que se embriagava, afogando-se.
    Lembrou-se do que ela lhe dissera uma vez, perdidos ambos um do outro, traçando rotas pelas estrelas:
    — Deixe meu espírito no frio, não mexa nele, não o aqueça. Você é covarde ao fogo e não sabe lidar com incêndios.
    Realmente. Ardia em febre. Beber só piorava. Rompia o limite que assegurava a integridade do pensamento e da memória, pois a cachaça tomava-lhes as mãos e conduzia-os dançando e gargalhando cruelmente entre os cardos e mandacarus do sertão do imaginário. Contudo, na febre, delirava, e isso era o seu incêndio e tinha lá os seus açoites. Misturavam-se verdades suas e dela, na recuperação mnêmica dos gritos e dos sussurros. O que teria de fato acontecido? Onde acabavam o feito e o dito e iniciava a percepção?
    Queimava-lhe também o remorso da inércia diante da febre epitelial que dela transcendera ao extrafísico. Ele, terrenal e salgado, era de um elemento diferente, um que virava vidro quando diante da chama, e, vidro que era, deixara-se transver, deformando o que estava além de si e codificando-se na sua própria invisibilidade. As labaredas eram nada mais que um balé ruivo e alucinado sobre seu corpo e espírito, ambos incapazes de arder com ela. Punia-se intimamente, tentando incinerar o que lhe sobrara de razão, a ver se, ao menos, nas cinzas, haveria um pouco da matéria que não tinha podido dar a ela nem com flores, vestidos e babilaques tecnológicos. A rocha de que era feito tinha baixíssimo grau de fragmentação, e viraria aço muito antes de ser magma. Entretanto, como se imolava mesmo sem línguas de fogo, crepitava em estalos, irradiava ondas de lamentações infernais e encandeava distâncias homéricas, tanto que, sem saberem ao certo por quê, afastavam-se amigos e familiares, e incomodavam-se meio enojados desconhecidos de toda sorte, inclusive os semelhantes.
    Comeu o enxofre durante meses. Numa manhã que teimava em não raiar, procurou-se no espelho enquanto escovava os dentes, pois o embaçado dos olhos fizera estes acordarem por último. Porém, o que lá estava era-lhe totalmente estranho, e não da estranheza aterrorizante dos despertados do coma ou dos mutilados por ácido. O que lá estava não era um “quem”, não lhe parecia uma pessoa. Sabia como era uma pessoa, sabia! A estrutura óssea, os músculos, a pele. Por conseguinte, ainda que fosse outro, saberia que seria ainda uma pessoa, um ser, mas não reconhecia nada, não havia semelhança com nada. O que estava à sua frente era um ineditismo, uma palavra sem letras, um símbolo sem remissão. Lavou o rosto com o medo de que, uma vez limpos os olhos, a imagem lhes sumisse. Esfregou-os, e lá estava ainda, entregando-lhe algo que lhe pareceu um sorriso, a imagem. Passou a mão no vidro, retirando com as unhas os perdigotos desidratados e as marcas de pasta de dente, e sentiu o contato frio da matéria que lhe tocava de volta. Sentiu uma vertigem como a que só sentira quando criança, quando o pai acelerava na antecipação do declive, e o corpo parecia, por uma fração de segundos, flutuar para depois ser recebido pelo assento da Belina, a sempre possibilitadora de suas viagens ao sertão. Em seguida, algo lhe ascendeu a espinha, ao que o corpo todo obedeceu como se nunca houvesse sido aquilo o seu costume, e desatou-o do chão de azulejos retangulares azul-celeste do seu banheiro, tomando-lhe a forma para outra, uma forma nova e definitiva, equivalendo-se ao que jamais fora nem pretendia ser naquela vida. De mãos dadas, desincompatibilizaram-se com todo o resto, pessoas e coisas, sentimentos e memória. Olharam em volta e viram tudo se obsoletar sem que tivesse havido uma querela sequer. Ninguém era vencedor ou vencido. Tudo, simplesmente, existira, e tudo aquilo que haviam sido estava posto em uma fotografia sobre o aparador da sala, onde também jaziam uma bonbonnière vazia, uns bichinhos de porcelana e um porta-joias de concha bivalve envernizada, presente que dera a ela havia anos, quando as pérolas eram só imaginadas.

12/11/19

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