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sábado, 30 de novembro de 2019

O CAFÉ DE ACÁCIO


    O café descia quente como um abraço. Era frio onde vivia. Quando descia à cidade, tinha a sensação de que o dia o abraçava, e essa sensação era nada mais que isto: uma vaga ideia de quentura, conforto e excitação açucarada. Nunca vira seus pais se abraçarem. Nos poucos domingos em que foi à missa, em dias santos ou em ocasiões de sétimos dias, sentiu que as pessoas tinham uma espécie de medo físico inconsciente, uma íntima rejeição da suavidade. Os diálogos eram brutos, peremptórios. Os apertos de mão, violentos, quase como uma pequena contenda entre as partes, cada uma agredindo a outra com toda a tradição que carregava no peito, nos ombros e que canalizava às mãos impositivamente. Dessa forma, cresceu sem memória de afeto físico, sem memória mesmo de verbalizações de afeto.
    Olhava as poucas pessoas que encontrava no seu dia a dia de roceiro filho de roceiro com uma curiosidade alienígena. Ou eram os freteiros semanais que subiam a Aratuba, descendo de volta, em suas caminhonetes, o que plantavam, ou os vizinhos, se é que se poderia chamar assim a semiparentada residente a uma légua uns dos outros, no mínimo. Quando criança, havia mais encontros, nos quais ele e os outros meninos animalizavam-se nas várzeas e às margens do riacho, caçando teiús e matando rolinhas, degolando calangos e estourando cururus. Nessas brincadeiras, os mais velhos, iniciados na usura da adolescência, fumavam escondidos e tentavam descobrir quais dos mais jovens permitiam, por inconsciência, curiosidade, inatismo ou mesmo inação, um falso troca-troca, do qual estes sempre saíam em prejuízo. Quando eram identificados, os cus-de-bacorinha passavam a ser uma espécie de bem comum, sempre ausentes, sempre misteriosos e temerosos do seu novo segredo. Lembrava que o Totim Avelino, depois de iniciado, adquiriu uma atitude que variava entre o comportamento de um maracajá e o de um gato comum. Tornou-se desconfiado e arisco, mas também manhoso e dissimulado, porém, ainda assim, não conseguiu ver nele um café que pudesse tomar, nem quando ele mesmo adolesceu, e esburacava as bananeiras para satisfazer-se. O que não entendia era que o Totim, assim como o Macedo, depois que cresceu, deu para beber e virar mesa, sempre odiento, e, diferente deste, que morrera em briga de faca numa ocasião em que lhe chamaram burra-mole, fez-se respeitar pela vileza e imprevisibilidade.
    Assim, deu-se pelos seus doze anos de autoindulgência manual a inexistência do conhecimento alheio de sua pele, anos esses que, somados aos de sua infância, a qual acabara quando da morte de sua mãe, resultavam nos vinte e um de uma vida seca no meio da fartura fria daquele sertão de estranhamentos e sovinarias. Aconteceu então de, na antevéspera do dia que marcara para descer à cidade a fim de comprar as varas de cano de irrigação que substituiriam as estragadas pelo lodo e pelo sol, surpreenderam-no quatro criaturas como nunca vira, mais coloridas que as tangerinas, as mangas-rosa ou qualquer outra fruta dali, todas de peles rabiscadas e pintadas, divididas em dois casais de óculos escuros, carregando nas costas enormes mochilas com ganchos e varetas e cordas e penduricalhos, cantando-lhe — pois nunca imaginou que se falava com melodias — se poderiam acampar naquele terreno, que era seguro, próximo da água e mais quente. Demorou a responder que sim, numa trapalhada verbal espantada, desconfiada e maravilhada, pois nenhum dos argumentos que enumeraram fazia sentido. Quanto mais reparava neles, mais se impressionava e menos articulava, o que os fez pensar que ele tinha algum tipo de retardamento. Via as mulheres usando brinco na missa, mas eram discretos e furavam os lóbulos. Os quatro pareciam tucunarés que haviam escapado a muitos pescadores, rompendo-lhes as linhas e guardando nos corpos os anzóis como troféus. Todos tinham o couro mais colorido que os cabelos, os cabelos mais coloridos que as roupas, e estas mais coloridas que todo o sertão junto. A mais falante, que lhe fizera a pergunta, ria e miava palavras que ele nunca ouvira, o que o fez pensar, em seu preconceito matuto, se eram todos também meio aluados ou beréus, pois falavam como se não tivessem músculos nas mandíbulas, e as línguas pareciam rabos de boi tangendo mutucas. Nesse imbróglio, finalmente, entenderam-se: ele, que eles ficariam por uns três dias, pois estavam de passagem para Baturité, onde ficariam no Mosteiro; e eles, que ele se chamava Acácio, que o sitiozinho era dele e que poderiam acampar, usar a água e o arremedo de garajau onde ficava a latrina.
    Carga no chão, armaram as barracas na base limpa do outeiro e deram-se aos flozôs de turistar sem sair do canto e acender uns fininhos, coisa que Acácio fora ensinado na missa a atribuir ao Cão. Lembrou que, na infância, quando os mais velhos se escondiam para fumar, os cigarros eram pés-duros, de fumo roubado dos pais, enrolados em qualquer coisa, papel de jornal ou palha de milho. Apareceu o filho do Seu Zé Saboeiro com um fumo diferente, mutucado numa caixinha de fósforos, cheiroso e clarinho, e correu gente a dar uma tragada. Lembrou também que se decepcionaram, pois o fumo de rolo com que estavam acostumados era nauseabundo, mas arrebitava o espírito e os masculinizava e amadurecia de modo a ser uma espécie de rito de passagem entre eles. Por outro lado, além do fato de parecer tempero de mezinha, aquela ervinha amolecia as juntas e dava numa risadagem besta, da qual todos se constrangeram depois. Contudo, Acácio sentiu uma certa nostalgia quando a fumaça lhe atingiu as ventas, e ficou na janela que dava ao terreiro, bispando de longe como os coloridos estavam. Nunca viu gente falar tanto, e com vozes que não reconhecia em idade nenhuma, e com uma alegria tão antinatural, herética e livre. Sentiu uma angústia entre as pernas e um segão lhe abrindo a garganta, e, sem perceber, estava com as calças arriadas, punhetando como fazia quando brechava a curra do Totim Avelino por entre as bananeiras. Não eram nem as coxas branquinhas que os quatro exibiam, nem os decotes e os cangotes magnéticos. Era o fato de, aos seus olhos, os quatro não possuírem marca alguma de cangalhas ou cabrestos — que toda gente tinha —, misturado com aquela gastança de vida, aquela liberalidade de gestos e palavras e gaitadas e lassidões, como se não houvesse Lei no mundo, como se ele, Acácio, visse pela primeira vez o coito dos anjos com as almas das virgens que o padre Abelardo dizia que tinham passagem comprada e carimbada para o Céu. Aquilo tudo lhe espremia os ovos e espasmava as nádegas de tal forma que nem percebeu que emendara uma punhetada na outra, grunhindo e salivando como um barrão, como um bicho sem alma. Deu-se que as duas moças encangaram-se num beijo de língua, num beijo simples de namoradas, e que os rapazes se recostaram um no outro, românticos como noivos, pagãos como diabos, azunhando felinamente a nuca um do outro, entrançando as pernas e baforando a maconha como sultões numa orgia. Aquilo arregalou os olhos de Acácio, que tremeu na perna e gozou violentamente pela segunda vez no reboco de taipa do peitoril da janela, esganiçado na síncope moto-contínua daquela masturbação sem alvo. Doía de uma dor nova, sem centro, e sentiu que ia morrer ou nascer, não sabia ao certo, mas sabia que tinha de fazer algo. Correu ao fogão, ferveu a água e pôs-se a moer os grãos de café como se sua vida dependesse daquilo. Era tudo novo, havia estampidos mudos na atmosfera da cozinha, e seus olhos choravam sem sentido a recente descoberta do que tinha em seu quintal: um extremo nunca imaginado do que poderia ser uma felicidade física, um gozo perpétuo de sua existência, isso, se ele soubesse proceder. O caso era que não sabia, e a ideia de perder antes de ter o assombrava como o pé-de-peia que seu pai ensinou haver do outro lado do riacho, temendo que seu filho morresse afogado na curiosidade de menino.
    Chegou trêmulo ao fundo do terreiro onde começavam o mato e os pés de fruta, e falou o mais devagar que conseguiu que tinha café e perguntou se não queriam um pouco. Desde que chegaram, os quatro simpatizaram com Acácio. Apesar da afasia, ele era simpático e só um pouco mais velho que eles, o que viabilizava diálogos. Eram todos veranistas das primeiras férias da faculdade onde estudavam Geografia e queriam voltar com experiências e histórias que lhes antecipassem um renome na turma. Ninguém namorava ninguém ali, ou todos namoravam todos, mas só porque se deu a circunstância de todos toparem a viagem e o sexo sem compromisso entre amigos que viria dela. Entenda-se que a ausência de fronteiras sentimentais possibilitava a inclusão de novos membros naquela vadiação, como ocorrera em Mulungu, onde participaram de uma festinha de piscina no sítio de um completo desconhecido, que enfiara e gozara em todos os buracos dos quatro e acabara ele mesmo por descobrir as delícias do fio-terra, que evoluíra a uma sarrada, e esta, por sua vez, a uma bela comida de rabo, que levara gritando suas revelações. Sem saber, Acácio também era uma lagartinha itinerante na teia quaternária ocasional daquela ovulação de aranhas. Eles mesmos intuíram o açúcar daquele café, mas estranharam a rapidez do contato. Normalmente, demorava dois dias, tempo suficiente para que se percebessem visual e sonoramente as possibilidades fetichistas que ofereciam.
    Entraram, sentaram, sempre rindo gentis e lubrificantes, e o cheiro do café pungiu-lhes as verdades de Acácio. Súbito, sem que tivesse havido um arranjo para tal, gemeu na fumaça o sabor da carência de uma vida inteira, uma carência encorpada, negra, forte, terral. O frio da Serra era a partitura daquele concerto, em que as cores das cordas e dos metais silenciaram ante aquelas primeiras notas das madeiras, harmoniosas em sua urgência, impactantes em sua suavidade. Pegaram das canecas, sorveram calados, e Acácio tremia idiofonicamente seus desejos íntimos. A moça que mais miava foi a primeira a agir. Não disse nada. Pôs-se de pé e cercou-o sentado no tamborete de couro de boi, roçando os bicos dos seios durinhos sob a blusa em seu cachaço teso. Acácio vibrou inteiro, gaguejou algo incompreensível e sentiu uma boca quente tomar o lugar dos mamilos e sussurrar-lhe num meio chupão um “delícia de café, brigada”. Nem bem se ergueu, e recebeu um cangote penujando-lhe a boca em retribuição, conduzindo-o ao jirau, reclinando-se em decúbito e, antes do abraço tão imaginado, ofertando-lhe o fruto branco e polpudo no fim daquela cerviz. O fumo do café fresco recebeu a marola colorida com exatidão. Logo, a cozinha era um palco de desmembramentos de vergonhas e do defloramento do próprio Acácio, que entendeu o que havia do outro lado do riacho, além dos temores de seu pai, dos malassombros dos pés-de-peia e das caiporagens brutas dos meninos mais velhos. Do lado de fora, passando o terreiro vermelho, a friagem trouxe uma chuvinha rala, engordando a travessia do riacho, que transbordou inútil numa cachoeirinha mais abaixo, onde, escondido do seu pai, enveredava-se Raimundo Avelino, arrastando pela mão um leitãozinho que descobrira na semana anterior no oitão de sua casa, desconfiado, meio gato, meio maracajá, para as locas dos pitus, que era onde tudo aquilo acontecia.

30/11/19

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