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domingo, 8 de dezembro de 2019

O MILAGRE DE SANTA CLARA


    — Olha aquele um: não foi marcado. Feliz, sem marcas, quase santo. Nesse aí, a vida errou o tiro.
    — A vida não mata com bala não. Isso é sonho, Francisco. A vida mata lento, e é com veneno, e veneno no homem pode ser na veia ou na ampola. Esse não tem cara de quem porta porque administra.
    Sempre achei que era branca a pessoa da morte. Francisco ria disso e me dizia que a vida é que era branca, e os homens a sujavam. Esse outro lado que jamais atingiria me divertia nele. O amor é algo que também mora nesse outro lado. Ele era cheio de sorrisos venturosos, um peito de passarinho. Dizia em meus ouvidos que toda melancolia tinha o seu mel, e que eu era a “sua melancolia”. Francisco era um ponto brilhante que eu orbitava encolhida, enegrecida de sombras e crateras carbonizadas.
    Olhei de novo o homem, mais atenta, enquanto Francisco me recitava versinhos do Jeneci. Realmente, ele parecia uma versão definitiva e irretocável do Francisco. Era velho sem ser gasto, era branco e iluminado, andava como se se espalhasse pelo caminho e se tornasse mais completo a cada passo. Acredito que os polos, as extremidades de tudo, de alguma forma se encontram num paradoxo perfeito em algum lugar. Se aquele homem era, como dizia Francisco, um não-marcado, ele era, segundo eu mesma, todas as dores juntas. Contudo, o que era, naquela situação, diferente de nossa habitual discordância das coisas era que eu não acreditava que as marcas nele eram dele. Parecia que essas marcas eram aquilo que ele espalhava, tornando-se mais belo à medida que regava o mundo das dores, sombras e crateras que eu conhecia tão bem.
    Francisco, ele, sim, era um santo. Conversava comigo como se eu fosse um bichinho, punha flores em meus cabelos no final de um dia de trabalho. Aquela semicalva também parecia a do Santo, o Outro, e eu gostava de fingir arranhá-la com minhas unhas. Foi ele quem me ensinou a olhar o sol na hora certa, a tomar cerveja na hora certa, a fazer amor na hora certa. Talvez fosse isto o que me dificultasse amá-lo: não me sentia transformada, mas sim consertada. Aquele excesso de luz me aniquilando a escuridão acabava por tirar de mim o que poderia me fazer sentir-lhe amor: a necessidade. Francisco era onipresente. No universo, a escuridão é onipresente. A luz é que é pontual como postes iluminados numa estrada noturna e sertaneja, saindo ou entrando nas cidades. Naquele universo franciscano, a luz era insidiosa, e eu era obliterada em vez de iluminada. E eu sabia que não era assim com aquele velho. A luz que vinha dele não me obscurecia; eu era atraída por ela. Aquele homem branco era, sim, a morte, eu sabia. Sabia porque, quanto mais eu o olhava, mais eu mesma eu me sentia, e era tudo de uma claridade que não me matava, como a de Francisco fazia, mas que me revelava. Enquanto Francisco ia me contando das cores do sol na linha do mar atrás de mim, servindo como assento no qual me recostava na Ponte Metálica, eu ia me sentindo mais nua e distante, olhando para aquele homem branco passeando calmo na noite que purpurejava o céu crescente diante de mim. Aquele homem era a morte porque não me matava.
    — Francisco, eu preciso andar. Vamos até o Joca? A gente vai pela areia, molhando os pés.
    Isso era entrar na noite que entrava na cidade.
    — Vamos. De lá, a gente vai pros barcos, talvez ainda tenha camarão.
    Incomodou-me um pouco ele aceitar. Tinha a esperança de que ele dissesse não, e eu diria que tudo bem, que iria assim mesmo, que ele poderia voltar, que ele não me fazia falta, que eu não o queria. Encandeada, eu fui. Sabia que o velho tinha ido por ali. Sabia que eu tinha esse dom de rastrear gente, de farejar gente igual a mim. Talvez conseguisse. No mar, ele não entrou, estava em roupa de passeio. Há quem se banhe à noite, ainda mais naquele novembro quente dos infernos. O mar de Fortaleza tinha essa propriedade de esquentar o frio e resfriar o calor, além de ser um limite que só transpassam os barcos e os suicidas, e ele não era nenhum dos dois. Por que eu queria alcançá-lo? O que eu faria, o que eu diria? Diria? “Oi, boa noite, o senhor é muito bonito”. Ele não era bonito; era outra coisa. O que eu sentia era outra coisa. Não o queria como homem, não lhe cobiçava o corpo. Eu queria mesmo era perguntar “Oi, boa noite, o senhor me leva?”. Preciso ir. Preciso me escurecer de novo, preciso de mim negra para poder olhar as estrelas. E Francisco? Francisco era bom. Eu não o apagaria.
    — Você quer dar um mergulho?
    — Eu, não. Por quê?
    — Tá muito quente. Olha aquele lugar ali. Tem pouca gente.
    — Francisco, e se eu quiser, mas não contigo?
    — …
    — É, sozinha. E se eu quiser entrar, e não voltar?
    — Tá, tudo bem, a gente não vai. Não precisa apelar. É que a gente já andou tanto…
    — É, a gente andou muito. Aqui tá bom. Consegue uma água de coco?
    — E uma cervejnha?
    — Pode ser. Deve ter vendedor de camarão por aqui. Já vi gente vendendo ali, no Espigão.
    E se eu aproveitasse e entrasse mesmo? O homem branco deve estar lá… Ou chegando. Sei que andei mais rápido que ele. É quente mesmo, Francisco tem razão. Se bem que, sei lá… Estou respirando melhor. Nesse céu sem nuvens, já dá para ver as estrelas, apesar da cidade. Por que tem tanta luz em toda parte? Isso sufoca igual aos fios e aos postes e aos prédios. Igual ao Francisco. Sozinha, seria bom entrar. A água está boa, quase não há ondas. Aliás, nas ondas, eu penso melhor. Já consigo pensar melhor. O barulho das ondas não vira palavra, e a palavra atrapalha o pensamento, o verdadeiro pensamento. As palavras pesam como âncoras, como a que prende aquele navio lá… O barco lá longe, que, no mesmo corpo, espera e parte, sou eu, um estado fixo e itinerante, esta vontade de ir, indo, mas estática, ancorada, contemplando a jornada. Falar atrapalha a viagem.
    — Aqui, o coco. O rapaz lá vai trazer o camarão e as cervejas junto.
    — Então, pra quê o coco?
    — Ué, você pediu, ora. A cerveja foi ideia minha.
    — E o mar?
    — Olha aquele navio ali. Deve vir carregado de quinquilharia. Nessa recessão, é só o que se consegue vender. Deve ser bom ficar parado no mar, o vento, a espera… Sabia que, dependendo de onde eles vêm, eles podem esperar mais tempo pra aportar do que pra chegar aqui? Se vierem do Recife, com certeza… Olha, viuvinhas. Deve ser época de tatuí. Nem sei como ainda tem, com essa poluição.
    — Eles se adaptam, eu acho.
    — Olha aquele senhor de novo. Olha, sem preocupação, sem peso… Acho que não é rico. Gente rica anda torta ou dura, desfilando pra ninguém.
    — É…
    — Ué, não vai discordar não? Você tinha dito que o homem carregava veneno.
    — Acho que tem mais veneno no barco.
    — Opa, chegou a cervejinha, E o camarão. Valeu, irmão. Pedi pra você também, Clara. Olha, até o senhor lá vai dar um mergulhinho. Também, com esse calor…
    — É. Agora eu quero também. Vamos apostar quem nada mais longe?
    — E nossas coisas?
    — Deixa com o moço da cerveja.
    — Tá, mas isso de nadar…
    — Qualquer coisa, você me salva.
    — Certo.

08/12/19

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