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segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

FANTASMAS


    Estou plenamente convencido da existência dos fantasmas. Não falo de alma nem de espírito. Fantasmas. Aqueles de lençol branco, não, nem correntes. Acho que um morto tem muito pouco que fazer, aliás, nada a fazer. Os mortos gastam a eternidade tentando ser, eles gastam todo o tempo tentando ser. Dessa forma, acho que um morto não tem a intenção de metaforizar nada. Os males da vida e também os seus bens ficam na história, que já é um fantasma em si, mas de outro tipo, o que assombra, pois nunca existiu como deveria. A morte tem seus próprios sofrimentos, suas próprias revelações, sua própria dinâmica, que é incompreensível a quem não consegue enxergar as revoluções dentro da estagnação que é tudo o que não é aqui.
    Eles existem. Pensam, sofrem, amam, odeiam, gozam, entediam-se, acima de tudo, entediam-se e desenlaçam os nós emocionais a fim de tecer longuíssimas imaginações, cidades, continentes de tecido cosido de fiapos de fome e sede, inveja e desesperança, mas também de exaltação e euforia, orgulho e ternura, um mantel universal fruto de todos os escrutínios que existiram, e não esqueçamos aqueles que foram imaginados, as ilusões, ah, as ilusões... Há tantas, no fantasmário escalonado, que se confundem com a própria inexistência da matéria e dos movimentos.
    Tudo, para eles, é em desacordo com os movimentos. Houve um que me visitou, pensamento que era, quando eu estava ocupado em tentar não pensar, o que sempre dá muito trabalho. Invadiu, maçadoramente, minha tentativa frustrada de ausência e ficou a encarar-me, envolvendo-me com os fios que desatava e tecia na minha frente. Não fluía. Espalhava-se. Quando dei por conta, ele era uma série de pensamentos que não eram nem nunca foram os meus, sendo pensados sem a minha permissão, como um filme diante de mim num cinema sem portas. O fio narrativo que se desenrolava na tela e me envolvia vestindo-me, ao mesmo tempo em que me desnudava de mim mesmo, ia contando coisas que sucederiam possíveis apenas se fosse eu o roteirista da película, se, como num sonho, a irrealidade substituísse com a mais aceitável perfeição a totalidade da falta de estratégia do exército mundano das horas marchantes que é a minha vida, mas dando-me controle sobre o seu curso, dando-me a divindade de criar um mar e um vento, e pondo-me náufrago numa ilha de espectros mutáveis ao meu comando, na qual eu seria o imperador e o náufrago, o deus exilado. Nesse ponto, espantado com tanta liberdade, perguntei-lhe "isto é a morte?", ao que, numa gargalhada condescendente, silenciou outros tantos fios, todos coloridos com minha ignorância de tudo aquilo. Entendi a estupidez da pergunta, sentei-me na poltrona mais ao centro da sala e me deixei ser contado na tela.
    Mostrou-me misturas de sensações que nunca imaginei serem possíveis. No momento exato do medo, vinha a preguiça. Quando atingi a vertigem em seu máximo, deu-me a indiferença. Mesmo as cores e as outras percepções sensoriais que substituíam a imagem e a forma eram inéditas, impossíveis. O mínimo som que emanava metálico do que me parecia ser um carrilhão brotava do imprevisível, e onde deveria haver o subsequente espanto, instalava-se algo como uma memória embaçada pela vida, pelas formas que me cercam, pelos nomes das coisas. Eu mesmo, naquela narrativa, não tinha a minha forma nem o meu nome. Meu peso era aéreo, e eu respirava o líquido que era o ar. As chamas eram sedas cálidas, e o frio era agradável como uma tarde na praia. Havia, afinal, um enredo. O sol era uma ideia morna que eu deveria atingir, como um Ícaro exitoso. Porém, atingi-lo demandava esforço, e vários outros fantasmas que se desfiavam sólidos e inconstantes ora auxiliavam-me, ora me ignoravam, e a solidão como eu conhecia se personificava ao meu lado, um fantasma novo, sorridente e compreensivo, com o meu próprio rosto, dando uma nova perspectiva a cada fracasso. Ali, eu comecei a entender, estava a mensagem, impossível de ser dita, inviável de ser exemplificada. Foi-me assim instruindo que nada se opõe e tudo se complementa, existindo, ainda, independentemente, como os vários eus que todos os outros fantasmas se configuraram, trocando de lugar conforme a conveniência do que eu queria que acontecesse.
    Assim como num sonho, senti despertar ao fim do filme. Ali estava ele com os mesmos olhos, instruindo-me em silêncio que não devia procurar os pensamentos, que pensar é o mesmo que prender-se à cadeia do tempo. A morte tem a sua própria forma de viver, disse-me com os olhos. Hesitei em lhe fazer uma última pergunta. Queria saber se a morte seria uma sequência interminável de lições que daria a mim mesmo. Ele o percebeu como percebera tudo o que eu tentara pensar, desobedecendo-lhe. Isso lhe foi suficiente para antecipar-se numa nova gargalhada, ainda mais humilhante. Em seguida, foi-se da mesma forma como veio, incômodo e tirano.
    Deixou-me vazio, e senti que me roubara algo. Corri ao papel e tomei-me o pulso, medindo. Certificado, tentei escrever. Só então, percebi o que me fora furtado. Sem que eu me desse do que ele pretendia, ao me encher de significados, não me dera palavra alguma que lhes fosse corpo, e nenhuma das que possuía se prestava ao trabalho. Ali, entendi. Deitei, epifanizado. Fantasmas existem sim. Não têm nome, não têm forma, não têm idealização possível. Mas existem mais reais que a sua própria ausência, que somos nós e que é a íntima essência da vida.

15-16/12/19

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