Número de sílabas (desde 11/2008)

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segunda-feira, 4 de novembro de 2019

A CANÇÃO DE MARIALVA

    Queria tanto saber tocar violão! Nas vezes em que tentara, sentiu que tinha dedos de capim, de pato, de anêmona. Suas amigas ou tocavam ou conheciam um boyzinho que tinha pelo menos um ukulelê, e sempre rolava um sonzinho na calçada, passando de mão em mão junto com os baseados e os vinhos baratos. Tinha esquecido muita coisa que queria com toda a força de uma criança que não tinha nada: dançar como as bailarinas de auditório, saber brigar para matar sem esforço, ter todos os brinquedos do mundo, e, é claro, ir à Disney. Crescera e, como toda criança pobre, entendera cedo que lugar lhe cabia. Conhecera os homens cedo, e à força. Contudo, embora o tempo e a normalidade do estupro entre suas amiguinhas lhe tentassem empurrar a aceitação de que era um objeto, assim como os veadinhos do bairro e até os que não eram, guardaria para sempre outro tipo de desejo, um novo, sem nome e sem alvo, um que sabia que nunca seria satisfeito. Este lhe incomodava amiúde, sobressaltando-lhe as pequenas felicidades e o sono, à moda de uma assombração ou do estouro dos rojões que anunciava a chegada da droga na favela. Associava essa vontade ao violão nem ela mesma sabia por quê. Vinha como uma melancolia inconsolável e breve e se esfumaçava na erva que tragava, queimando-se na bia que sobrara da solidão da calçada na noite anterior. Era sozinha de espírito. Nunca soube do pai, a mãe lhe deixara na avó para fabricar e parir mais solidões, que somavam oito e também desconheciam como e por que existiam. A avó morrera, o avô, antes. Sumiram tios e primos, e todos lhe aplaudiram os primeiros aniversários, e para nada! Nunca os perdoou. Porém, ela o fez à mãe, que aparecia só de vez em quando, sempre mais feia, mais murcha, mais usada, querendo saber como estavam ela e Elisabete — a única que se mantivera na casa após a diáspora dos irmãos sobreviventes —, desculpa que introduzia uma busca dissimulada em cuidados por coisas que pudessem ser convertidas em pedras de crack. De alguma forma, não a culpava. Acreditava de coração que ela saíra de casa para proteger as filhas restantes, já que o último a lhe ocupar o colchão e o corpo também queria as carnes mais novas balançando nas redes na sala-cozinha. Intuía que a diferença crucial entre si e sua mãe — a que protegera uma e desgraçara a outra — consistia na sua timidez absurda de concha, que contrastava com a profusão incinerante de D. Marleide, ainda presente apesar da ruína física e da mental, que já se insinuava.
    Se pelo menos soubesse uma música… Só uma! Quem sabe não se lhe soltasse a voz, que sempre escondia em bodejos baixinhos quando queria dizer algo importante… Elisabete, bem mais desenvolta, cobrava dela mais atitude. Ambas careciam de estudo, mas cozinhavam bem, e era o que lhes garantia o sustento: uma banquinha de porta, com pratinhos, bolos, salgadinhos e espetinhos, que alimentavam os passantes entre suas perdições. Incrementavam com cachaça e cerveja em latinhas, lenitivos de passagem que lhes pagavam água, gás e luz, já que o muquifo onde viviam era próprio.
    — Tu vai fazer o quê pra dar rumo à tua vida, Marialva?
    — Que é?
    — Amofinada desse jeito, ninguém te quer.
    — Cuide do seu priquito, que eu cuido do meu.
    — Deixa de ser grossa, porra! Vem cá, deixa eu te contar um negócio.
    E falava dos meninos amigos dos peguetes e dos PA que colecionava. Ambas eram bonitas, mas Elisabete, um ano mais velha, prerrogativa da qual sempre usava contra a irmã, tinha razão: Marialva se escondia a ponto de ser irrelevante mesmo entre os amigos. No entanto, Marialva só se incomodava com o excesso de expectativas. Deixassem-na em paz! Iria viver sua vida entre pessoas ou entre pulgas, contanto que pudesse manter seu único luxo, um aparelho celular usado, mas com 32 gigabytes de músicas, estendível por um memory card com o dobro da capacidade, e seus preciosos fones wireless, que mantinha escondidos da irmã. Ouvia Elisabete, fingindo-lhe atenção. Era bem intencionada, bem o sabia, mas lhe adivinhava um desmundo como o da mãe, sempre propensa a ser pingente de piroca. Seus sentidos só se atiçaram quando mencionou Flavinha, companheira de mágoas e de baseados.
    — Esse aí até a Flávia pegava, má!
    — Pegava era porra. A Flávia é direita.
    — Direita, sei. Dorme na caixa, isso sim.
    — E daí, que ela não gosta de homem? Que é que tem?
    — Tem nada não, mas daí tu dizer que ela é direita…
    — Rapaz, ninguém tem nada pra dizer dela. Trabalha, cria a filha sozinha, paga as contas.
    — Sim, e o tempo no Auri Moura Costa?
    — Já pagou pelo que fez, Bete. Te manca. A pessoa não pode mudar não?
    — Pode, mas também pode não. Ela só consegue trabalho noutro bairro, que o povo daqui não confia deixar ela fazer faxina nem no quintal. Dona Lisete que sabe! Vivia sumindo coisa quando ela limpava lá.
    — Mulher, aquilo tu sabe que era o Marquim que vendia pra dar pro Boca. A Lisete era era cega.
    Ficavam nisso, e nisso também ficava a sua revolta. Era fraca de verbalizar o universo de frases que acumulava das canções, assim como as suas próprias. Uma noite, já quase na hora de guardarem a banquinha, ajuntou-se o bando de sempre: todos com idades aproximadas, a maioria escondendo na EJA a humilhação do desemprego, e o restante vivendo de bicos. Entre estes, Flavinha, cheirando a sabonete depois do serviço e de botar a Maíra para dormir, abastecida do mingau grosso. Como de praxe, alguém sacou dum violão preto um Raul, depois a Legião e o Cazuza, e ficaram nessa, rodando um e outro beck e praguejando a vida em nome de Jah. Flavinha tinha uma voz tão bonita! Soubera por ela da Nazirê, da qual virou fã.
    — “Ê, acorda pra vida, mais um dia que acaba, alguma coisa aí dentro ainda não terminou…”, encoravam.
    Seu peito esquentava. Aquele desejo primitivo insurgia, mas o olhar louro da Flavinha logo afastava qualquer angústia de fatalidades. Isso e as tragadas no baseado imundo iam limpando a morte que lhe rondava a vida. Sentia acendendo uma palavra, que crepitou na outra, e deu-se uma fogueirinha branda cantarolante sem a necessidade da cortina do coro para se esconder.
    — “Cada dia que se passa, mais difícil vai ficando, todo dia um leão você tem que derrubar…”
    Alguém tinha dinheiro, e Bete botou na roda a cachaça que sobrara, o que amansou qualquer possibilidade de insurreição. Eram todos gente boa, evitaram a vida inteira meter-se com as gangues e cair na prostituição, e ali só rolava mesmo maconha. Uniam-se por esgueirarem-se entre os abismos da miséria e pela música, distintivo tribal de bom gosto, espécie de autoelitização conferida para existirem naquele excremento de cidade. Flavinha, ali do lado, comentava baixinho tudo que Marialva queria ouvir: como a banda empoderava as mulheres, como os homens eram sórdidos, ainda que fossem pais, irmãos, amigos, e como sua pele era lisinha, sua morenice era atraente… Algumas doses lubrificaram as bocas, que começaram a fumar umas as outras. Bete já havia guardado a banquinha em casa e lá dentro mesmo ficara com Valdir numa gemedeira baixinha e gostosa, e os restantes tocavam “Vamos fugir”. Foi o que Marialva e Flavinha fizeram, com meia garrafa de Pingo de Ouro e dois baseados na cabeça. Apesar de ser acostumada, Marialva perdia feio para Flavinha, que mantinha um andar de quem vinha do culto.
    — Encosta aqui, Alvinha…
    Amassaram-se, dedilharam-se como se fossem duas cuícas, e Marialva nem ligava mais se a viam ou ouviam, e gemia alto a voz que nem sabia que tinha, aqui e ali reprimida por Flavinha, que temia o que a polícia faria se as pegassem. Sabia de cor o ensinamento do cassetete em seus orifícios e já tinha engolido à força o esperma de todos os patrulheiros do Ronda e do Raio daquela quebrada o suficiente para ser cautelosa. Alvinha, mesmo assim, voava e estrebuchava, ela mesma, uma guitarra sendo solada pelos dedos e entre as coxas de Flavinha, que lhe chupava os gritos e os seios. Findas e aterrissadas, desceu uma a outra do parapeito baixo da casa da esquina e seguiram seus rumos, ignoradas pelo silêncio do violão que também virara sexo pelos cantos.
    Na manhã seguinte, a cabeça descolocada de Marialva sacudiu com a irmã socando os cadarços da rede, perguntando pelo seu celular. Demorou um pouco a sair da afasia, mas súbito apavorou-se num grito.
    — Tava junto do meu!
    Durante a bebedeira, todos tinham entrado na casa, fosse para mijar ou foder. Bete começou a socar tudo que não pudesse quebrar acidentalmente e só parou quando a parede arrancou-lhe umas lascas de unha. Marialva, zonza, grasnou que seus fones também sumiram.
    — Porra de fone! Merda de fone! Vivia me negando, e olha aí! Caralho! Caralhooooooooooo!!!
    Quem passava em frente achou que fosse fim de relacionamento, tamanho era o ódio verbal de uma e o bestialismo gritante da outra. Marialva parecia um suíno que fora amarrado para o abate. “Minhas músicas, meu fone!” era o que tentava vocalizar, mas o surto animalesco não articulava. Bete já apenas chorava entredentes o nome da Flávia, já a irmã desesperava como da primeira vez, como no primeiro estupro de um dos pais de um de seus irmãos mais novos, que morrera com o pescoço quebrado na mão da polícia. Lembrou-se do peso e do suor, do esmagamento e da asfixia, lembrou-se de não poder gritar e, justo por isso, gritava o que nunca pudera. Sentiu-se de novo uma coisa, um objeto roubado, ela mesma, e não os aparelhos. Bete já parara e apenas observava firme o desespero gutural da irmã. Pela primeira vez, sentiu-lhe o que sentia pela mãe, sempre escandalosa, sempre constrangedora.
    — Aprendeu, sapatão dos inferno? Aprendeu?
    Flávia dera um tempo do bairro. Soube-se que tinha sido pega pela patroa fazendo um boquete no marido, e a boca miúda cresceu o fato até as raias do crime passional, umas, e da fuga com o traidor, outras. Por meses, não se soube dela nem da filha, até darem notícia de que virara evangélica e vivia com um dono de bodega e a filha em Caucaia, onde ninguém que as conhecia morava, e só souberam disso acidentalmente, pois o próprio Marquinhos, indo fazer um avião de coca para o Boca pelas bandas de lá, foi atendido por ela no balcão da Mercearia El Shadai, cabelo longo e preto, olhar zangado, voz dura. Quase não a reconhecera. Quando perguntou como estava, recebeu um versículo de resposta e um “passar bem”. Marquinhos juraria a todos que ela estava muito bem, que nem parecia mais aquela ladrona das coisas de sua mãe e que, de fato, Deus agia certo por linhas tortas.

04/11/19

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