Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

domingo, 20 de outubro de 2019

A CANHESTRA

     Aquelas revoluções requeriam demais. A todo tempo, uma necessidade; a cada bandeira, um peso enorme nos braços e algumas libras a mais de pressão arterial. Seu tempo com amores limitavam-nos a parceiros e companheiros, de cama e de partidos, de causas e cafés da manhã. Porém, todos insuficientes, por isso passavam. Envelhecia demais, até para alguém com mais invernos que verões. Amargava-se como o café, que era sempre preto, forte, requentado e sem açúcar. Fervia um tanto na máquina e esquecia-o. Esquecia aos poucos família, infância, natais. Nas ruas, pessoas sofriam de problemas reais, crianças, mulheres, velhos, eram todos vítimas de estupro do sistema sádico que vendia sonhos impossíveis dentro do pesadelo das cidades. Não podia aceitar. Não podia relaxar. Nada lhe parecia mais burguesamente criminoso que um travesseiro limpo, no esteio do qual iam pequenos prazeres ordinários, pequenas vaidades, que cresciam geometricamente como um ídolo babilônico, um manipanso de vícios que lhe destruíam a visão e o pensamento críticos, que a embonecavam à moda de uma Barbie Malibu.
     — A plenária de ontem fui um acinte! Pior que quem permitiu a fala da Lídia foi quem aplaudiu depois!
     — Não vi nada de mais. Ela propôs que o partido dialogasse com as ONG de direita, só isso.
     — Só isso? Você diz “só isso”? Não tá vendo que é por aí que eles entram, e as diretrizes vão virando relativas?
     — Não. Acho que precisamos de mais interações. Quem não se comunica…
     — …não se manipula. Isso é manipulação da pior espécie, covarde, covarde! Vou fazer uma moção para a expulsão da Lídia!
     E era assim. A intransigência vinha sempre enquadrada numa paranoia de tentativa de implosão dos princípios democráticos. Afinal, era esta a única falha da democracia: oxidava-se de dentro para fora, como um ovo que apodrece se não se come logo. Suas hienas, seus abutres e seus vermes eram parte da fauna permitida naquela áfrica frágil, portanto imprescindível de vigilância.
     No entanto, havia um ponto cego nesse orwellismo que propunha: quem havia de lhe apontar as falhas?, quem seria apto, mais que ela, para tal? Um dia, questionada se seu radicalismo, ele mesmo não seria uma corrupção da causa, visto que obstava as alianças e, por conseguinte, isolava o partido, respondeu com tantos artigos — que cuspiu feroz nas reuniões que ela mesma conclamou e às quais atribuiu urgência urgentíssima — contrários àquele atrevimento, que acabou por dividir os correligionários em descontentes, desiludidos e revoltados, estes últimos, seu alvo, responsáveis pela inviabilização política do Sr. Cristiano Maldonado, arcano da criação do partido, carreira inimputável, várias vezes articulador de coligações vitoriosas, o qual passou — iniciando-se pela etimologia do nome, escarnecida cientificamente por ela — a um pária gagá, um ex-macho-alfa ultrajado pela ascensão feminina na legenda, da qual ele mesmo teria sido um dos principais responsáveis por atrasar, um antifêmeas, uma múmia misógina a se expurgar. Assim o fizeram. Nem mais para conselhos o queriam, exceto os mais íntimos, ainda assim, às escondidas.
     Eis que chegou o ano eleitoral. Sua base não via nome melhor para encabeçar a chapa. Era hermética a escândalos, fiel transcendentalmente às causas do partido, incorruptível, férrea. Nos primeiros debates, peitou nomes cujos sobrenomes remontavam às oligarquias e coronelados e descadeirou-os a todos, pois era versada na desconstrução das instituições, principalmente o patriarcado. Contudo, ali também estava a Dra. Lídia Cremona, cuja relevância política não só escarnecera, mas também, de tanto ódio e desdém, também havia passado a ignorar — “Não se chuta cachorro morto.” — tanto que não enxergara sobre ela sequer a necessidade de elaboração de uma estratégia de embate. Então, em outro partido mais moderado, “Lídia – juntos, somos família” era o slogan. Ainda tentou, naquele debate e nos outros, todos televisionados e disponíveis em plataformas virtuais, aludir à nocividade do tradicionalismo familiar às minorias; à vergonha que era uma mulher à frente de uma legenda pautada no conservadorismo; à competência que jamais teria uma mulher que cedera egoisticamente o tempo a qualquer instituição que não fosse o povo. Chamou-lhe arrivista, dissimulada, neoliberal, nada colou. O discurso de Lídia era sólido como o dela, porém flexível o suficiente para que aqueles que se opunham a esta vissem naquela uma possibilidade, talvez, uma representatividade.
     Perdeu miseravelmente. Seus apoiadores, vendo o estrebuchar de suas falas cada vez mais violentas e apocalípticas, não lhe perceberam nem a inteligência nem as intenções. Só viram a raiva e a paranoia contra — como pode? — outra mulher, esta, mãe, esposa, trabalhadora, íntegra. Madalena dos Santos lhes havia criado, inconscientemente, uma imagem feminina antagônica, e logo contra quem: uma candidata que advogara contra vários agressores de esposas, todos enquadrados na Maria da Penha, cem por cento de causas ganhas, vinte anos de Direito, vinte e cinco de casamento, engajamentos mil em prol de desabrigados, sem-terra, menores, trabalhadores também mil.
     — Deveria ter chamado a Lídia pra vice. Pagou pelos cornos.
     — Não sei como durou tanto. Chata pra caralho!
     — Agora, faz o quê?
     — Chama pra vereadora. Ainda tem respaldo nos bairros.
     — Olha, outro dia eu vi uns “memes” feitos com a foto dela.
     — Ruins?
     — Péssimos! Mistura do Enéas com a Cuca.
     Descabelou-se na disputa. Venceu, diplomou-se e renunciou martirizadamente numa sessão de sexta-feira, umas cinco pessoas de quórum, incluindo alguns funcionários da limpeza que não faltaram, todos terceirizados — quem ligava? Planejara um suicídio político retumbante, mas ficou mesmo só no eco que se perdeu nos vãos da Câmara. Chegou em casa, descalçou as alpercatas, abriu e matou a garrafa de cachaça pela metade, pensou na vida e dormiu, cheia de sonhos heroicos em que era carregada nos braços populares, laureada por poetas revolucionários, ensinada nas escolas do MST e reproduzida em pichações urbanas: “Madalena vive!”. Foi encontrada semanas depois pela própria Lídia, que, após inúmeras tentativas de contatos telefônicos e virtuais sem sucesso, resolvera falar-lhe pessoalmente para propor-lhe uma secretaria — que seria mais tarde oferecida ao Sr. Cristiano Maldonado, aceitando-a este com um certo pesar que passou rápido.
     Os olhos eram de peixe, e o vômito seco no colchão barato era a única coisa que fedia na casa simples da periferia onde morava. Incrivelmente, não havia fedor oriundo do corpo. Em vez disso, a Dra. Lídia Carmona poderia jurar mais tarde à polícia — só não o fez pelo medo do ridículo de pagar de desconstruidora da imagem pública que a própria Madalena criara — ter sentido um almíscar odorífero e doce, à semelhança do cheiro em comum das flores do mato, muito normalmente encontrado nos borreguinhos que acostumara esconder do pai, açougueiro caucaiense, cidade onde o sertão começa a ficar explícito no Ceará, a partir de Fortaleza.

20/10/19

Nenhum comentário: