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segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A REVELAÇÃO

     Ele era fastioso desde menino. Sobejava os pratos, estruía pães e frutas, fingia esquecer refeições, recusava o oferecido até em festas.
     — Mas nem um pedaço de bolo? É de chocolate, eu que fiz.
     — É que me dá azia…
     No bar, ficava só no limão com sal como tira-gosto. Era o que se dava às vezes, muito raro: umas palitadas de calabresa ou uns cubinhos de coalho assado. Os amigos só não se exasperavam porque bebia bem e sabia ser parceiro de farra, virando tanto copos quanto noites e, fosse o caso, mesas e cadeiras. Tinha mais de um conjunto de cicatrizes de garrafadas pelo corpo. Batia-se por causas e mulheres, pelos amigos e pelo nome da mãe. Não amunhecava diante de nenhum dos três: covardias, afrontas e direitismos. Parecia odiar tanto militares quanto macarrão, e ansiavam-lhe a bile beterrabas e empresários, peito de frango e de evangélicos, músculo de boi e de bombados de academia bolsonaristas.
     — Acho que você devia cuidar mais da saúde. Depois, acaba tisgo. Isso de esponja de chão de bar vai te lascar como fez com o Deci. Lembra dele?
     — Primeiro, que academia foi feita pra imortais. Segundo, o Decisão morreu atropelado.
     — Atravessando a rua bebaço.
     — Vai culpar a vítima agora? O sujeito arrastou o negão por meia quadra.
     — Era uma ambulância!
     — Pois que salvasse vida e não tirasse! O Deci era um cabra bom, generoso. Mais de uma vez te defendeu!
     — Macho, era a minha mulher na briga!
     — Vá se lascar! Continua com ela? Pois vão se lascar os dois!
     …
     — Vai me dizer que tu é Lula?
     — Vou.
     — E o mensalão?
     — Tem ladrão em todo partido, mas no meu se investiga.
     — Vai defender bandido pra lá! E o PT?
     — Lugar de trabalhador. E o teu miliciano babão de imperialista? Já chupou o ovo do Trump hoje?
     — Trabalhador? Tudo vagabundo e ladrão igual a tu!
     Pelo menos, tinha quem lhe valesse na mão. Eram uns três amigos fiéis, de sangrar junto, que sempre escolhiam o seu lado. Não tinham muito do que se arrepender; normalmente, era o lado certo. Ele era desses borralhos quixotescos, brilhante e boquirroto, e, como o da Mancha, não aguentava muita pancada, mas não abria.
     Porém, um dia, encontrou-se com fome, dessas de converter ateu. Trabalhava muito, devia ser isso. Escapou numa coxinha com suco de graviola no boteco em frente, o de costume. Não deu uma hora, ela voltou como um carma, personificada em câimbras estomacais e gemendo como as visagens do sertão de seu pai. A contragosto, fechou a marcenaria mais cedo e foi ao bar, que não tinha quase nada de comer em casa. Perguntou o que tinha de tira-gosto.
     — Como é?
     — Feijão verde, tem?
     — Tem, mas…
     — Vê meia porção.
     Mastigou revoltado, tentando não sentir o gosto. Mas era bom, e ele sentiu. Dois minutos foi o que durou.
     — Vê a outra.
     — Quem?
     — A outra porção, Biu! Ligeiro, que eu quero acabar logo.
     — Chega aqui, Chico! Olha isso aqui!
     Biu serviu a outra metade, e mais uma porção inteira, e mais uma de batata frita, uma de linguiça e uma de macaxeira. Ele sonhava dentro de um pesadelo. O paladar lhe era uma novidade total, assim como o olfato, mas eram ambos luzes piscando sobre a pele que se esturricava de ódio pelas cessões a que se submetia. Faltava o quê agora? Pedir o peixe com baião? Peixe que nunca provara, cujo cheiro odiava e cuja fama atribuía, anticristão, à patuscada ilusionista de Jesus para enganar o povo? O boteco era simples, e aquilo era o que ainda havia pronto àquela hora. O estômago relinchava, e a antinaturalidade daquilo não lhe assustava tanto quanto o medo ancestral de morrer de fome. Tinha pouco medo da morte, mas este era o único que sobressaía: tinha consciência de sua fraqueza física e abusava na esbórnia como atrevimento diante da morte, mas sempre apelava para o chá e as mezinhas limpadoras de tripas e receios. Não comer era como ele erguia-se diante de Deus e gritava com orgulho sua debilidade diante da fé opressora e tirana, escravizadora de corpos e de almas. Logo ele, que não acreditava em almas, nem nas do sertão do seu pai, começou a sentir um prazer que não se localizava em lugar nenhum do corpo, não era ilusão de álcool nem nostalgia inútil de mulheres. Era algo tão íntimo e que o acariciava como nada lhe havia feito, que, justo pelo racional que era, custou a admitir o erro de atribuí-lo a serotoninas, endorfinas e dopaminas. Acabara de perceber que tinha um espírito, e este era uma besta feroz feita, aparentemente, apenas de voracidade.
     — Traz o peixe, então.
     Nessa hora, juntou gente. Os que iam chegando para o início da chumbregação noturna, as prostitutas que iam tomar o caldo de carne moída antes do serviço, os cobradores e motoristas que esperavam sua escala, os descoladinhos que gostavam de se passar por boêmios, os verdadeiros boêmios e os seus três amigos fiéis, todos começavam a chegar para bater o ponto. E todos, pasmos, afásicos, jurariam mais tarde que aquilo teria sido obra de aposta ou de autoflagelação pela última mulher perdida.
     — O que é isso, Arnaldo? Tá tudo bem?
     Os olhos crispados, a boca cheia de tilápia frita com cebola e baião de dois com nata e uma lagrimazinha sorridente foram a resposta. Pediram espaço, ladearam-no e pediram o habitual na expectante suspensão dos que aguardam um desastre. O desastre ocorreu após, finalmente, Arnaldo dar cabo de mais duas porções de batatas gratinadas e pedir uma cerveja. Sumarento, inchado e delirante, ensaiou levantar-se e caiu, girando trezentos e sessenta graus ao pé do balcão, arrastando consigo dois dos fiéis. No chão, espocando por todos os orifícios, gemeu numa voz suave que nenhum dos amigos havia ouvido até então:
     — Deus é um fela da puta…
     No enterro, os quatro amigos, que eram versados em várias literaturas, assim como ele, lembravam que lhes faltavam cavalos ou floretes para aquela situação.
     — Eu sempre achei que seria por causa de quenga.
     Compareceram algumas: as solteiras, carpindo, e as casadas, ocultando a presença. Biu era o que mais se lamentava. Por toda a vida carregaria a culpa de ter sorrido naquele dia.
     Arnaldo era pobre, e o caixão ele mesmo havia feito com madeira de palete em sua oficina. Apesar do que pedira, que era o ser enterrado como indigente para se unir às massas, os amigos fizeram uma vaquinha para lhe pagar os ritos fúnebres e o enterro: havia de ser assim, pois a heresia das últimas palavras não apagava a revelação. Enterraram-no confusos, sem terem o que dizer. Somente o Biu, numa tentativa de se livrar do remorso, deixando sobre a areia da cova tampada uma garrafa de cachaça e umas asinhas de frango, à moda de despacho:
     — Pelo menos morreu de barriga cheia…

14/10/19

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