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sábado, 26 de outubro de 2019

CÃES E GATOS

     O tempo lhe havia começado a puir nas dobras, e a ação cáustica dos desgostos de todas as vidas que não vivera lhe converteu o sangue num líquido fino, frágil nas veias, que se rompiam com o vento e a exasperação. Todos os espelhos lhe cuspiam homens diferentes, todos com feições nômades, errantes, amondrongadas. Teimava não lhes creditar o espírito, que também teimava em rejeitar seu corpo. Era uma grande lambança aquela quizila, tanto que o obrigava a andar sempre torto, ou como se arrastasse algo ou como se o empurrassem para os lados, como moleques a um bêbado. Evitava escapismos. Havia anos que seu último relacionamento dera mal. Ela era pouco mais nova, mulher viril, mais que ele. Apequenou-se diante da massa que lhe crescia ao lado, a qual parecia poder enraizar-se nele a qualquer momento e absorvê-lo como os benjamins que destroem calçadas e gretam asfaltos. Fugiu no álcool e no silêncio que submergia no barulho dos bares cheios de outros apodrecimentos. Ali percebeu que seria fácil irmanar-se e ceder ao fatídico daquela empreitada, a dos fugitivos heroicizados pelo peso das derrotas, capitães solitários de jangadas de cortiça fadados ao afogamento na noite da cidade. Deu-se o óbvio: o divórcio, a perda da casa, do juízo, da promessa de família. Desde então, não chegava mais perto de bebida. Em vez disso, dedicava seu ócio de aposentado à imobilidade da observação filosófica. Elaborava teses cujos objetos iam desde uma possível consciência dos cães de rua adquirida pelo mimetismo dos humanos — principalmente, os mendigos — à inerente cornitude dos homens de gravata, cuja proporcionalidade atribuía à área calva e aos centímetros caídos das calças de brim.
     — Que é que há, seu Argeu?
     — Opa...
     — A Romilda mandou perguntar se o senhor vai querer faxina essa semana.
     — Só por cima.
     — Homem, é o mesmo preço. Deixe ela fazer o serviço direito.
     — Não vou sair daqui pra ela limpar. Se ela quiser, é por cima, ou ela espera eu morrer.
     — Mas, rapaz, isso lá é coisa! Ela trabalha direitinho, deixe de besteira. Olhe, se for o barulho, eu vou sair, e o Valmir vai ficar só em casa. O senhor pode ficar lá com ele enquanto ela não termina.
     — Só por cima, só por cima mesmo.
     Não era que não gostasse do casal nem da Romilda, cunhada do Valmir, amigo de antes das dores nos ossos. Aconteceu com ele de rejeitar as gentes pela coletividade. Achava bonito homens sós, especialmente os jovens de olhar perdido; estes pareciam ter cometido o mesmo crime que ele e eram como personagens vagos num filme sobre a sua miséria. Observava-os assim como se os quisesse ser, só para ser a si mesmo de novo, num tempo antes de tudo.
     — Coisa esquisita. Senta na janela e fica como se estivesse esperando conversa. Quando a gente chega, escorraça.
     — Deixa, mulher. Faz mal a ninguém, não mexe com a vida alheia, fala até tão manso…
     — Isso é. A gente nem sente a ignorância. Não é normal.
     — Que é que o Valmir diz?
     — Que amofinou. Tá só esperando a hora.
     Distanciavam-se, e o olhar as acompanhava descerem a rua, quando lhe veio o susto seguido do cheiro de cigarro e roupa velha pelo lado oposto. Tinha uns vinte anos maltratados pela pobreza, mas era vivaz, e o espanto cedeu àquilo.
     — O senhor teria um minuto?
     — Claro. Diga.
     — É que eu tô aqui há dois anos e tô tentando juntar dinheiro pra voltar pro meu interior porque minha mãe veio se tratar de um câncer, e eu vim junto, mas ela morreu, e eu não tive onde ficar, então eu tô pedindo ajuda a um e a outro pra voltar pra Madalena, meus irmãos tão tudo lá, nem sei como é que tão, meu pai largou nós por causa da doença, e eu que fiquei cuidando de todo mundo, mas tive de parar de trabalhar pra vir com mãe, que morreu, e ninguém quer empregar ninguém não, moço, aqui é todo mundo desconfiado de gente de bem, ninguém ajuda, então eu lhe peço qualquer coisinha, só pra eu comer hoje, tô aqui só com a cara e a honestidade, o senhor pode me ajudar?
     — Madalena?
     — É, chegando no Cariri. O senhor conhece?
     — De nome.
     Olhava o rapaz de cima abaixo por trás dos óculos verdes de camelô e da voz mansa aborregada, medindo-lhe as dimensões.
     — Você não quer entrar não? Tem um resto do almoço ainda. Depois a gente vê uma ajuda.
     O rapaz, nascido e criado na necessidade e dentro da capital, entendera. Não era a primeira vez. “Esse, pelo menos, é velho”, pensou por trás da resignação mal disfarçada da malandragem necessária no sorriso que pretendia agradar para receber.
     Meia hora depois, escorreu rua abaixo com um pote de sorvete ensacolado com baião e ovo, um pãozinho, uma nota ensebada de dez reais e a sensação de estar um pouco mais sujo da imundície da cidade, que mais o fadigava que enojava. Habituara-se ainda menino, quando era isso ou roubar, e tinha medo da polícia, que já lhe estuprara de cassetete aos treze anos, estourando-lhe o ânus por pegá-lo engatado nos quartos de uma cadela de rua, sarnenta e quase cega, numa viela no Vicente Pinzón. Lembrou-se também de quando fora currado aos catorze pelos internos recolhidos pelo Juizado sob o olhar e os coiós dos agentes, que açulavam: “lasca esse baitolinha pra ele aprender que cu é pra cagar!”. Nem sofria mais tanto com o episódio. Sofria mesmo era com a impressão de que aquilo resistia em seu corpo como uma impingem, um vitiligo sexual que o acompanhava a toda parte, facultando aos outros o direito à proposta, cuja anuência humilhante ainda o fazia sentir mais humano que nas mãos da polícia, a qual parecia possuir um radar especial só para ele, um sensor que o tangia cada vez mais para as margens do que realmente queria, que era trabalhar em paz na Beira-Mar, vendendo-se com dignidade, recebendo a paga justa pelo seu corpo.
     Seu Argeu voltava à janela já limpo, cheiroso a sabonete barato. Lera em algum lugar que Albert Einstein afirmou ter simplificado a vida depois que passou a usar sabonete no corpo, no cabelo e nos dentes. Sempre achou aquilo um absurdo. Os seus, já em cacos, escovava mesmo com a pasta de dente mais cara da mercearia, cuidado tardio depois de uma vida inteira de negligência bucal. Entendia que só a mais mentolada tirava tanto o gosto como o cheiro de água sanitária que teimava sempre em renitir por algumas horas, por isso sumia quando sentia que lhe iam falar coisas de passagem. Sentou-se novamente na cadeira de plástico — única que sobrara do conjunto de quatro com mesa comprado ainda na época do casamento — à beira da janela, limpando os óculos na barra da camisa.
     Lá fora, um cobrador de ônibus se lamentava ao amigo motorista, ambos esperando o horário de partida, que as catracas eletrônicas iriam demitir muita gente. Mais adiante, uma pequena manada de passageiros esperava bovinamente a ignição do ônibus, que, graças a Deus, tinha ar-condicionado, os tempos mudaram, aquilo parecia a Aldeota. Somente a catinga da carcaça de um gato atropelado havia dias incomodava a todos mais que o sol. Seu Argeu arrazoava consigo mesmo se os gatos não se suicidavam com um propósito, à guisa de camicases, pois, diferente dos cães, não lhes era votada a devida atenção social, injustiça que gostaria de ver corrigida, afinal eram animais lindos que, se ninguém visse morrer, acreditava virarem meninos que lhe visitariam, as linguinhas ásperas, os sonhos que ainda restavam.

26/10/19

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