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domingo, 6 de outubro de 2019

FRETE SEM VÉUS

     Era alta. Morena como o Diabo, maltratada, mas, outrora, recebera dengos. Cabelos indígenas, olhar de capitã do mato. Mãe. O filho vinha ao lado, saracoteando gentil. Junta aos dois, uma parenta circunstante. Olhava se a olhavam. A fêmea antes daquilo tudo era ativada se a olhavam. Ainda que casualmente. Muitas pessoas na estação; algumas, homens; poucos destes, em seu caminho. Calhou de o olhar de um, juvenescido de repente, esgueirar um vetor onde ela estava. A tangente acertou-a na linha da cintura, que aqueceu e serpenteou. O filho, criançando na plataforma, cambiou de status e converteu-se num empecilho inevitável: ele era um documento intransferível de mãe. O homem notou, e seu olhar, como uma parábola, curvou-se desencorajado ao menino, que já tinha uma intuição daquilo: danava-se um pouco mais, a mãe era dele, notasse-o!
     A morenice crepusculou súbito, e sua mão respondeu apertando muda o pulso do menino — “ai, mãe, minha mão, mãe!” — e semierguendo-o como uma sacola de lixo que se arrasta para longe, no caso, longe da vista do homem. A parenta limitou-se a um riso meio falado, nervoso e servil, pois já vira e sabia aquilo: também ela já fora mulher. O menino chorava de modo a revoltar os pré-passageiros do metrô. Já o homem, este não via mais uma mulher; via uma mãe, uma merda de mãe, uma que não merecia ser mãe. Lembrou-se da sua: tão santa, só lhe dera uma ou duas surras, nem se lembrava, jazia no céu das mães nas nuvens dos filhos órfãos, coitada. Aqueloutra, a diaba, nem se lhe parecia, nem era mulher! Pobre daquele menino, melhor que nem tivesse pai, que, se houvesse, seria um protocorno. Filho de uma puta com um corno, quem lhe valeria?
     Ela, já anoitecida, nem entendia mais a jiboia faminta em seu ventre. Havia quanto? Meses, anos? Arrastava, agora acompanhado de ralhos e xingamentos em voz baixa e dura, o filho catarrento de choro. Não gozara na feitura dele, nem depois se lembraria de tê-lo feito. Amortecia a barriga com a outra mão espalmada, resignando-se àquela castração. O olhar adivinhava ódio. A parenta oscilava aparvalhada os olhos, a cabeça e o sorriso pateta para todos os lados. O trem chegava.

06/10/19

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