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segunda-feira, 13 de junho de 2022

TUA FORMA

deixa a forma que têm as coisas que te sustentam
esmorecer, colapsar, ruir.
a estrutura envelhece e te ilude que és tu que o fazes.
teu corpo, teus hábitos, tuas manias,
tudo são apenas as roupas
que as traças do tempo roem.

o café que se oxida no copo americano
no boteco da esquina
fala de abraços quentes que nunca tiveste,
mas que te protegem nas manhãs urbanas.
contudo, ele azeda, mofa, apodrece na borra e na barriga,
e tu pensas que és tu que te amarguras.

não te permitas sofrer
pela epiderme que se afina,
pelos ossos que se afinam,
pelas ruas que te afinam.
as formas de ti e do mundo
apenas te contêm,
e não permitas que te formem
nem que te deformem,

pois tu não és esse corpo
nem essa vida miserável.
tu não existes porque um número te registra
ou te cancela.
tu não vives porque respiras
ou te reproduzes,
tampouco porque te disseram os patrões
que a vida é trabalho,
e trabalhaste.

nem mesmo o sangue que te pulsa
e te materializa na carne que ama,
que teme e que odeia,
nem mesmo isso és tu,

pois o amor, o ódio e o medo,
tudo isso passa.
as ruas passam, os pontos, as camas,
a fome e o prato cheio,
assim como o corpo e suas consequências,
passam.
só tu duras.

inócuo, incógnito, rejeitado, ignorado:
tu és a tua grande novidade,
a surpresa no fim da escalada
à eventual e definitiva revelação.

tu és aquilo que acontece nos intervalos de ti,
desse tu falso:

chegas inesperado, sentas, a despeito do chão,
e emerges a casta submarina
de todas as etapas que cruzaste;
contemplas, plácido,
em seguida, suspiras,
tornas a mergulhar
e desapareces,
ondeando no mar a promessa
de que existes mais, muito mais e maior
que a urna em que te acomodaram.

10/06/22

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