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terça-feira, 1 de setembro de 2020

DESABRIGO

 
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minha casa sempre foi cheia de enormes solidões
e cresci habituado à mesma companhia

hoje, face a face com o esmero da vida
no fazer-me inteiro com os outros,
não sei mais qual pedaço arrancar para encaixá-los
e me vejo sem braços e sem pernas,
roendo com os cacos dos dentes
as horas inoportunas em que tenho de ser vário

de minha casa antiga, ficou o alicerce
robusto, profundo, arrochado com o passado da Terra

nele me sustento e resisto ao esquartejamento
das relações
e existo erodindo, como minha casa velha,
como os corações velhos enterrados no quintal
ao lado do poço seco
e dos esqueletinhos dos cães de minha história

quando for caverna, quem sabe, habitável,
talvez acomode melhor
os que me bateram na porta

talvez, num veio ou num olho d’água,
dê-lhes de beber e de banhar
no reverso do vinho da parábola bíblica:
a simplificação da festa familiar,
o sangue finalmente convertido em coisa
que mate a sede que tiveram de mim

talvez, também, menos possível, embora,
haja nos minerais em volta algo de precioso,
algo que, recebendo um pouquinho da luz
na hora certa do dia,
lhes recompense a fadiga dos músculos
e a desesperança dos punhos
cansados das chibancadas
com uma liga ou uma gema qualquer
que lhes valha as alianças
que nunca fui capaz de forjar

assim, prospectado, devidamente convertido
em sítio arqueológico,
ou retiro espiritual,
ou mina abandonada,
eu possa responder, ainda que ecoando,
a todas as perguntas, a todos os inquéritos,
ou então, como sói às cavernas,
eu seja o lar de mistérios e morcegos, que, finalmente,
possam ser deixados em paz

01/09/20

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