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sexta-feira, 6 de novembro de 2020

28 DIAS (OU TUDO O QUE OLHOS COMPOSTOS DEVERIAM VER)

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    Ponderava se era assim também com as outras: susto, fuga, risco de morte, velocidade e caos. Não frequentava enxames; era tímida. Voejava, quando podia, o mais lentamente possível para não cair, somente para sentir a vida fluir mais lentamente. Porém, a sua maldita natureza a compelia a extremos constantes, a vilezas e indignidades que suportava estoica, porém limiarmente. Queria ser como os marimbondos, autoenclausurados em seus arapuás, respeitados, temidos, deixados em paz. Ou, pelo menos, como as mutucas, suas parentas mais afortunadas e hematófagas, em sua rotina campesina de parasitar vacas e jumentos. A ela lhe deram os monturos, os excrementos humanos, os piores de todos. E essa insustentável vida de não-viver, de pária, de nitrificante alada da cadeia alimentar? E essa sua abjeta natureza, que sequer lhe permitia o suicídio — tentara bocas de fogão, pás de ventiladores, circuitos elétricos; seu corpo de reflexos autônomos funcionava à sua revelia, e a morte sempre lhe escapava, escapava inclusive quando lhe desferiam tentativas de mãozadas, raquetadas, envenenamentos —? Seu corpo era feito para a sobrevivência, e ela expiava na dúvida de uma eternidade daqueles sofrimentos e imundícies.
    Contudo, nas poucas vezes em que se permitia ajuntamentos, percebia sempre parecer o bando diferente, com raras e cada vez mais avolumadas exceções. De uma hora para outra, o corpo daquela uma cintilava cores diferentes, discernidas pela infinidade de seus olhos-colônia, subitamente curiosos, estranhamente interessados. Quase não reconhecia a familiaridade dela consigo, não fora pela química obscura que suas antenas e patas lhe comunicavam como tal. Já as outras lhe pareciam ser tão outras quanto possível. Estranhava também a absurda heterogeneidade naquela aparente monotonia de formas. Será que somente ela o notava? Não incomodava também às outras aquela eterna novidade, aquela coletividade harmoniosa de completas estranhas? Perguntava-se o que as unia além da involuntária irmandade de espécie. Não lhe era aceitável que a resposta fosse aquele ciclo, aquela rotina coprofágica, necrófila, carniceira. Seriam todas filhas da mesma mãe sob o sol de Deus apenas pela abjeção de suas existências? Seria possível que o que as igualasse fosse a miserável condição de marginalidade essencial, que não poderia ser romantizada nem na sacralização da morte conservada em alfinetes, como era privilegiada às borboletas e aos escaravelhos? Já os vira assim — pois seus olhos viam tudo, assim como sua teimosia o registrava numa memória que era mais rancor do que saudade — em breves clarões de luzes que intermitiam na frente das pessoas. Tentava compreender o fascínio que as luzes e as cores exerciam tanto sobre ela quanto sobre as pessoas… As pessoas! Várias de sua espécie eram mortas por elas a toda hora, por que não ela? Se bem que as pessoas, quando se agrupavam, pouco se distinguiam também entre si. Eram dadas a reuniões vorazes, quando, a bem da verdade, viviam o tempo inteiro sós. Somente lhes invejava a hipocrisia pela inerência do arbítrio que ostentavam. Queria ser uma pessoa, queria poder escolher, queria as opções. As pessoas possuíam o hábito que mais lhe agudava o desejo, com a pungência de um nó cego muito fino, muito entranhado, indesatável: elas se destruíam. Como desejava… Via-se trucidando todo o seu enxame com suas patinhas, vomitando-lhes seu ácido gástrico e lhes abandonando os corpos às formigas, sobre as quais planaria como uma ave, rainha, senhora da vida e da morte, das quais disporia como se de uma gravata ou de uma pulseira de prata. Queria ser como as pessoas, consciente e impune, assassina natural, fera temida.
    A brevidade de seus pensamentos era causada por sua própria condição física e social. Sempre que aprofundava um raciocínio, operava uma brisa qualquer, tinha lugar uma mudança de luz ou de temperatura, anunciava-se um movimento humano, premia-lhe a percepção de um alimento. A tudo isso seu corpo respondia prontamente, e o gérmen de ideia que a fazia tão diferente das outras se partia. Vivia de catar os pedacinhos e recompor-se eternamente uma criatura como idealizava que uma criatura tinha de ser: autoconsciente. A agonia só lhe era tolerável pela distinção que lhe dava entre suas pares: orgulhava-se intimamente de sua própria angústia, de pastar sobre a bosta não por vontade, mas por natureza, e de ser a única a saber, dentre todo aquele gado minúsculo, a diferença entre ambas. A derrota de sua vontade era a sua vitória, consistente apenas em saber de sua participação agente naquela luta.
    Sentiu, naquele momento, a vibração costumeira no ar a que seu corpo tão prontamente respondia e, antes que pudesse formular o pensamento habitual de contrariedade, disparou no caos como se nunca houvesse outra coisa dentro da qual estar. Porém, algo estava diferente. Tudo foi muito rápido como sua própria vida. Sentia diferente, e aquilo, que não tinha nome, converteu-se instantaneamente em frase. “Estou tão cansada…” Surpreenderam-na tanto o próprio sentimento quanto a capacidade de tê-lo. Dedicou-se pela primeira vez à possibilidade do gozo do momento seguinte, que se revelou não um fim, como temeu no primeiro susto, mas sim como um meio. Queria estar distraída, pestanejada, e podia deleitar-se na recém-apropriada consciência de que podia vencer a vida simplesmente abraçando aquela novidade.
    Seu pensamento não se havia partido como sempre. Conseguia pensar além daquela realidade entômica, sem que essa natureza lhe obstasse a razão. Entendeu finalmente a sensação de cansaço, leito em que se revirava entre lençóis rasgados a sua tão íntima agonia. Sentia-se banhada por ela, premiada pela indignidade de sua vida inteira: estava cansada, e essa concepção libertava-a das obrigações do corpo, da consciência do corpo, a qual, até aquele instante, tinha-lhe roubado toda possibilidade de transcendência, de apartação, de liberdade. Num instante, aprofundou-se vertiginosamente em outro caos, a despeito do ar. Parou. Estática, experimentou a sensação novíssima de não conseguir mover-se, embora a natureza em seu corpo a compelisse ao corisco. Ao seu redor, um único espectro dominava o panteão de cores que era capaz de enxergar — era ele também uma revelação. Sua carapaça vibrava, mas ela não se movia. Seus olhos compostos gritavam ao seu cerebrozinho que se aterrorizasse, e, a isso, seu corpúsculo lutava por converter o terror em voo, inutilmente. Ela não se movia. Fascinada, entendia pela primeira vez uma natureza sua que era superior à anterior, fazendo-a, assim, superior a si mesma naquela onipresença monocromática. Contudo, agradou-lhe algo remanescente de sua natureza original: não podia fechar os olhos. Felizmente, viu tudo. Na contagem normal, a humana, findavam-se ali os seus 28 dias. Na dela, tudo, absolutamente tudo se iniciava ali, enormemente como um voo em linha reta, lento e revelador.

05-06/11/20

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