Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

terça-feira, 3 de novembro de 2020

RITO DE PASSAGEM

(Clique na legenda para acessar a página de origem da foto.)

    Este ano já me levou quatro: meu irmão Cláudio, minhas tias maternas Lourdes e Tate (esta última ajudou a me criar) e, no dia de hoje, minha avó paterna Jesuína. Não lhes fui aos velórios nem aos enterros. Enterrei-os e velei-os (exatamente nessa ordem) eu mesmo no que tenho de mais íntimo, no meu próprio chão, na minha própria capelinha. Foram cerimônias muito simples, quase anônimas. Somos todos anônimos na morte. Não faz diferença à matéria o nome que lhe damos. Os nossos nomes, os verdadeiros, não são passíveis de morfologia ou fonética, não cabem nos registros. Os nossos nomes são coisas que se sentem. São alegrias e tristezas, ódios, rancores, perdões. São presságios. São contemplações.
   Chegamos à idade de aguardar. Esperamos confinados, receosos, conformados. Abnegamo-nos de qualquer luta; apenas sobrevivemos e aguardamos. Porém, dentro de nossas salas de espera, entrincheirados, mascarados e besuntados de álcool em gel, corremos o risco ainda maior de uma rendição, essa, sim, irrevogável: o risco de desejarmos.
   Nesse caso, o encouraçado nuclear em que nos convertemos mira seus canhões aos faróis e torreões desprotegidos de nossa própria costa. O que resta de nossas praias, já sem sol e sem mar, traga como um ralo de areia movediça o acumulado de relicários que protegíamos — a última traição da terra, que se negou a ser chão à sua própria gente.
    Aquilo a que chamamos mal somos nós, morrendo a vida que levamos. Somos nós, permitindo-lhe a existência. Somos nós, adaptando-nos ao inadaptável: plantando e colhendo miséria à revelia do solo.
   É nesses ritos que eu ladainho a liturgia diária de sobreviver e enterrar, de indignar-me e envolver-me fetal no lençol velho, sudário sertanejo desse calor de fim de mundo. Não sei que deus louvo, não sei contra qual diabo peço proteção. Chegou o tempo de enterrarmos os nossos mortos, sem lágrimas, sem surpresas, mas com uma inquietação íntima muito própria da pedra que derrete na frágua, sem adivinhar se será ferro de grilhão ou aço de punhal.

03/11/20

Nenhum comentário: