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sábado, 1 de setembro de 2018

SE EU TIVESSE O TEMPO DA INVERNADA

(Para meu irmão João, que se mudou de vez para os campos de São Saruê)

Se eu tivesse o tempo da invernada
Um chuveiro do céu desabaria
No sertão, sob o sol do meio-dia
Banharia a caatinga descampada
O roçado daria sem enxada
A boneca do milho afloraria
Jerimum no pau-darco enramaria
E o coentro encheria o chão da estrada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Cheiro verde, quiabo em carreada
No canteiro de cada moradia
O melão-caetano enfeitaria
E o maxixe engordando na ramada
Mandioca torrando na fornada
Mais que muita da roça chegaria
Macaxeira com nata troaria
No festim comensal da farinhada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

O algodão bem branquinho na almofada
A rendeira tramando em cantoria
E na reza tardã d'Ave-Maria
A fartura na voz gratificada
Sertanejo só quer terra emprenhada
Que a semente na mão transformaria
Sem pavor de estiagem ou carestia
Sem dever nem penar vida explorada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Trocaria o vaqueiro a disparada
Pelo trote macio atrás da cria
Folgazão, o alazão relincharia
No verdume da mata recopada
Toda rês passeando apascentada
Novilhada na coreografia
Cavaleiro sua veste trocaria
O gibão por cambraia entrecortada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Verde o pasto e gorda a galinhada
Criação solta em toda a pradaria
O jumento e o sapo, em cantoria
Caboré e carão na luarada
Carcará caçaria em revoada
Asa-branca a avoante ajuntaria
Leite, queijo, coalhada e ambrosia
Carneirada e cuscuz com panelada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Rapadura, cauim, quindim, cocada
De alfenim ruas pavimentaria
Cajuína das bicas verteria
De paçoca, o reboco da calçada
Cantador largaria a embolada
Pois a boca e o bucho encheria
Aluá do olho-d'água brotaria
Na vereda, no pasto e na picada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Flamboaiãs vermelhando em pleno nada
Mata branca não mais se chamaria
Um jardim aflorado de poesia
Brotaria no peito e na chapada
Pluma nova a cada despetalada
A pedra do lajedo adornaria
Xique-xique e mandacaru na pia
Teimariam na flor sua punhalada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Pescador mudar profissão sagrada
Saberia que não precisaria
Pois o rio, de fundo, afundaria
Tudo o mais que não fosse a luta honrada
Desse homem que, a cada tarrafada
Para casa, feliz, carregaria
O fremir escamado em prataria
O milagre da paz multiplicada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Sem credor nem exploração danada
O Nordeste então se livraria
Do grilhão que a fartura quebraria
E da dor da desolação finada
Sua memória seria adorada
Para cá, marchariam romarias
Sanfoneiro faria a liturgia
Cada alma, de amor, revigorada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

Se eu tivesse o tempo da invernada
Estação sem colheita não teria
Toda mesa a família espelharia
Toda casa, não faltaria nada
Mulher, homem e toda a filharada
O futuro, enfim, contemplaria
A possibilidade da alegria
Viraria a certeza da jornada
Se eu tivesse o tempo da invernada
Minha terra São Saruê seria

31/08/18

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