Número de sílabas (desde 11/2008)

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quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

DO CORAÇÃO TRANSPARENTE


Jamais escreva com a tinta da dor
Ela é massa amorfa
Pérola barroca no ventre da concha
E no fundo do mar

Escreva invisivelmente
Não permita que nem seu coração o note
Deixe como que notas
Onde, um dia, o desaviso
Faça o texto

Só assim, desapaixonado,
Translúcido, anatômico,
Insensível,
Sensibilizar-se-á o seu coração
No dos outros

25/12/19

FELIZ NATAL


A areia sertaneja que o nordestino carrega na alma é a medida exata do valor de sua terra, mais mãe que as outras terras, porque seus filhos têm raízes firmes e profundas e sofrem e vicejam com ela sem abandoná-la. Podemos adornar o tronco e empenduricalhar os galhos, mas nossas raízes, no escuro, fornecem a energia da nossa luz. A todos os filhos da terra, um feliz Natal.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

FANTASMAS


    Estou plenamente convencido da existência dos fantasmas. Não falo de alma nem de espírito. Fantasmas. Aqueles de lençol branco, não, nem correntes. Acho que um morto tem muito pouco que fazer, aliás, nada a fazer. Os mortos gastam a eternidade tentando ser, eles gastam todo o tempo tentando ser. Dessa forma, acho que um morto não tem a intenção de metaforizar nada. Os males da vida e também os seus bens ficam na história, que já é um fantasma em si, mas de outro tipo, o que assombra, pois nunca existiu como deveria. A morte tem seus próprios sofrimentos, suas próprias revelações, sua própria dinâmica, que é incompreensível a quem não consegue enxergar as revoluções dentro da estagnação que é tudo o que não é aqui.
    Eles existem. Pensam, sofrem, amam, odeiam, gozam, entediam-se, acima de tudo, entediam-se e desenlaçam os nós emocionais a fim de tecer longuíssimas imaginações, cidades, continentes de tecido cosido de fiapos de fome e sede, inveja e desesperança, mas também de exaltação e euforia, orgulho e ternura, um mantel universal fruto de todos os escrutínios que existiram, e não esqueçamos aqueles que foram imaginados, as ilusões, ah, as ilusões... Há tantas, no fantasmário escalonado, que se confundem com a própria inexistência da matéria e dos movimentos.
    Tudo, para eles, é em desacordo com os movimentos. Houve um que me visitou, pensamento que era, quando eu estava ocupado em tentar não pensar, o que sempre dá muito trabalho. Invadiu, maçadoramente, minha tentativa frustrada de ausência e ficou a encarar-me, envolvendo-me com os fios que desatava e tecia na minha frente. Não fluía. Espalhava-se. Quando dei por conta, ele era uma série de pensamentos que não eram nem nunca foram os meus, sendo pensados sem a minha permissão, como um filme diante de mim num cinema sem portas. O fio narrativo que se desenrolava na tela e me envolvia vestindo-me, ao mesmo tempo em que me desnudava de mim mesmo, ia contando coisas que sucederiam possíveis apenas se fosse eu o roteirista da película, se, como num sonho, a irrealidade substituísse com a mais aceitável perfeição a totalidade da falta de estratégia do exército mundano das horas marchantes que é a minha vida, mas dando-me controle sobre o seu curso, dando-me a divindade de criar um mar e um vento, e pondo-me náufrago numa ilha de espectros mutáveis ao meu comando, na qual eu seria o imperador e o náufrago, o deus exilado. Nesse ponto, espantado com tanta liberdade, perguntei-lhe "isto é a morte?", ao que, numa gargalhada condescendente, silenciou outros tantos fios, todos coloridos com minha ignorância de tudo aquilo. Entendi a estupidez da pergunta, sentei-me na poltrona mais ao centro da sala e me deixei ser contado na tela.
    Mostrou-me misturas de sensações que nunca imaginei serem possíveis. No momento exato do medo, vinha a preguiça. Quando atingi a vertigem em seu máximo, deu-me a indiferença. Mesmo as cores e as outras percepções sensoriais que substituíam a imagem e a forma eram inéditas, impossíveis. O mínimo som que emanava metálico do que me parecia ser um carrilhão brotava do imprevisível, e onde deveria haver o subsequente espanto, instalava-se algo como uma memória embaçada pela vida, pelas formas que me cercam, pelos nomes das coisas. Eu mesmo, naquela narrativa, não tinha a minha forma nem o meu nome. Meu peso era aéreo, e eu respirava o líquido que era o ar. As chamas eram sedas cálidas, e o frio era agradável como uma tarde na praia. Havia, afinal, um enredo. O sol era uma ideia morna que eu deveria atingir, como um Ícaro exitoso. Porém, atingi-lo demandava esforço, e vários outros fantasmas que se desfiavam sólidos e inconstantes ora auxiliavam-me, ora me ignoravam, e a solidão como eu conhecia se personificava ao meu lado, um fantasma novo, sorridente e compreensivo, com o meu próprio rosto, dando uma nova perspectiva a cada fracasso. Ali, eu comecei a entender, estava a mensagem, impossível de ser dita, inviável de ser exemplificada. Foi-me assim instruindo que nada se opõe e tudo se complementa, existindo, ainda, independentemente, como os vários eus que todos os outros fantasmas se configuraram, trocando de lugar conforme a conveniência do que eu queria que acontecesse.
    Assim como num sonho, senti despertar ao fim do filme. Ali estava ele com os mesmos olhos, instruindo-me em silêncio que não devia procurar os pensamentos, que pensar é o mesmo que prender-se à cadeia do tempo. A morte tem a sua própria forma de viver, disse-me com os olhos. Hesitei em lhe fazer uma última pergunta. Queria saber se a morte seria uma sequência interminável de lições que daria a mim mesmo. Ele o percebeu como percebera tudo o que eu tentara pensar, desobedecendo-lhe. Isso lhe foi suficiente para antecipar-se numa nova gargalhada, ainda mais humilhante. Em seguida, foi-se da mesma forma como veio, incômodo e tirano.
    Deixou-me vazio, e senti que me roubara algo. Corri ao papel e tomei-me o pulso, medindo. Certificado, tentei escrever. Só então, percebi o que me fora furtado. Sem que eu me desse do que ele pretendia, ao me encher de significados, não me dera palavra alguma que lhes fosse corpo, e nenhuma das que possuía se prestava ao trabalho. Ali, entendi. Deitei, epifanizado. Fantasmas existem sim. Não têm nome, não têm forma, não têm idealização possível. Mas existem mais reais que a sua própria ausência, que somos nós e que é a íntima essência da vida.

15-16/12/19

sábado, 14 de dezembro de 2019

A SOBREVIVENTE


    Eu já ouvi que era uma adolescente com a simpatia de uma velhinha. Queriam dizer, talvez, que meu comportamento não era atrevido nem arrogante como o das minhas amigas de então — porque essas coisas de amizade mudam! —, cheias de bravatas e crueldadezinhas com todos. De fato, eu sempre achei essa vitrine espinhuda em que as meninas costumavam transformar sua fala, seus gestos e suas atitudes um artifício tão pobre, um desperdício de ironia existencial tão grande A maioria era frágil, gentil e carente como é o natural nessa idade, assim como os meninos também, inclusive. Todavia, com estes, a vitrine era uma hipérbole macaqueada do que eles achavam que um homem deveria ser. Sempre achei que era mais prática a transparência prudente; e mais segura, a verdade encarada no espelho.
    Hoje isso me lembra minha avó, D. Menininha, que morreu sendo chamada por esse apelido, o qual carregava o sentido exato do que ela fora a vida inteira: uma ispilicute.  Minha avó foi uma ispilicute mesmo inválida em sua cadeira de balanço, no sopé da calçada alta, implicando com o povo da rua, dando coió para espantar morcego e fumando escondido até a morte um cigarro pé-duro que ninguém sabia como obtinha.
    — Invente seus mistérios e me deixe com os meus, Ritinha.
    Esse foi o melhor conselho que recebi na vida, junto com o outro de procurar homem só pela manhã.
    — É quando eles traem, minha filha. Melhor lado do chifre é o lado de fora. E procure homem da perna fina. Trabalha, que é um danado

    Adaptei esse conselho ali pelos catorze, quando dei em cima de alguém pela primeira vez. Maria Luíza, um chuchu. Perninha fina, mas uma cinturinha
Fiquei com vontade de contar para minha vó do alvoroço, da lambança de quem faz sem saber o que está fazendo, do susto e da carreira, da risadaria e do gozo, o primeiro de vera, o que me abriu uma greta lascada na pele e no juízo, que eu tinha de preencher pelo menos uma vez por semana, senão ficaria doida. D. Menininha nem sabia como era certo aquele conselho das pernas. A pessoa é mais ágil, sem ser bruta, é leve e maleável, sabe intuir onde colocar o corpo, uma delícia. Perna grossa vem normalmente com uma modorra inata, uma leseira, um arrastado de chinela. Peguei mais regra que exceção, posso afirmar: mulher de perna grossa só presta para homem.
    Malu foi a primeira que me disse aquilo de parecer uma velhinha, numa tarde de um falso trabalho escolar no seu quarto cheio de pelúcias. Ela queria dizer que eu era mais experiente, imaginei na época, mas depois a entendi. Isso de não fingir ser outra pessoa, não dissimular esse eu-mesma, que era de acordo com o ela-mesma, me atribuía uma aura de alegre segurança, me incluía num grupo do qual eu não escolhera fazer parte, mas já fazia: o dos guias, o dos conhecedores dos caminhos. O que aconteceu de verdade foi que eu intuí tanto quanto a Malu todos os toques, o tempo certo em que as minhas mãos deveriam ficar entre as suas pernas, a sucção adequada para cada beijo e chupão, a quantidade perfeita de saliva em cada linguada. A diferença foi que eu agi com a mesma naturalidade de quem faz uma traquinagem qualquer, como tocar a campainha da dona Lourdes — que a havia instalado para estabelecer a diferença entre ela, que se arrogava ares de evoluída, e nós, o canelau, os zés-povinhos —, a única que havia naquela época, e sair correndo, calculando o tempo e a velocidade, o risco e o prazer, e tudo isso com a consciência da subversão e sem me questionar um só segundo sobre a simbologia ou a aceitação daquela molecagem pelos adultos, o que sabiam os adultos de ser criança?, o que uma criança deveria sofrer por ser quem é? Foi assim, como uma perna que se põe após a outra numa carreira desabalada, que eu descobri a doçura do proibido e a urgência de mais, porque aquilo era eu, e aquilo era muito bom.
    Não foi fácil, contudo. Guaiúba era, naqueles anos setenta, a despeito de ser um interior perto da capital, de um atraso pouco possível de ser imaginado hoje, mesmo com este retrocesso mental que ascende contra pessoas como eu. O que hoje escandaliza era usual na época, era encartilhado e ensinado na fala e no cinturão. Escondi muito bem meu romance com a Malu, mesmo quando estávamos ulceradas pelas brigas que depois levaram ao rompimento. Escondi bem, porque possuo a arte de encaixar minhas máscaras sociais firmemente e de trocá-las com perfeição. Para meus pais, eu era só a moleca cheia de meiguice, estudiosa, boa filha, menina direita, porque era isso que eles precisavam saber de mim, e essa era a minha verdade para eles, a única. Não precisava ser
com outras pessoas quem eu era para a Malu. Para ser lasciva, depravada, puta, mulher, eu já tinha a Malu. Ninguém mais precisava me ver daquela maneira. Entretanto, já queria… Olhava as outras meninas da escola, fingia-lhes amizade para sondar possibilidades.
    No entanto, D. Menininha, por trás de sua quase cegueira desdentada e entrevada, me sentiu os guardados. Talvez pela sua própria experiência com a sexualidade, que continuo imaginando ter sido uma sequência de violências e resistências — porque ela, apesar de um conhecimento doutoral no assunto, que não hesitava em passar adiante desbocadamente, não falava do meu finado avô, por respeito ou nojo, os quais ela nunca deixou ninguém discernir exatamente, resguardando-se nessa dúvida —, ela adivinhava que eu já teria experimentado homem.
    — E aí, minha filha, já tá mexendo direitinho?, perguntava com uma cumplicidade e uma malícia que me emocionavam, porque eu sabia serem, daquele jeitinho dela, só para mim.
    — Oxe, vó, e eu lá mexo em nada? Sou bem quietinha, respondia no mesmo código.
    E ríamos, e assim nos entendíamos, cifradamente. Ela sabia de maneira sangrenta o preço da liberdade, pois esta lhe havia custado tempo, saúde e juízo, e, por isso mesmo, cuidou muito bem da minha durante aqueles dois anos em que o amor e o sexo cresceram em mim, e eu floresci. Quando ela morreu, experimentei uma solidão e um abandono que me amadureceram quase instantaneamente. No fundo da minha rede, enlutada, rasgando o desespero de uma órfã, acabei esquecendo a hora certa de trocar a máscara, e aquele rangido de dentes deu por faiscar na mamãe o corisco da desconfiança. Ela sempre soube que eu era mais próxima de sua mãe do que dela mesma, não que ela não fosse amorosa ou que fosse uma tirana, mas, simplesmente, porque estar ainda encoleirada ao meu pai limitava a mulher que ela era, e isso abria um abismo entre a sua subserviência sublimada e a minha liberdade vivenciada.
    Mamãe era um bastião, um arrimo, a viga mestra da casa. Papai, ocupado com a criação e com o açougue, homem honesto, muito limpo, bigode calado, devoto da Virgem, só era pai no manter-nos e no prover-nos. Éramos dignos em nossa vida de família pequena: eu, filha única, devido a mamãe ter perdido o útero no parto, eles e vovó, única sobrevivente de uma longa linhagem de maus-tratos. Isto ela ensinara à mamãe: “Pra mão de macho levantada, tem peixeira na cozinha. Ai de tu, se ficar igual a mim”. Sua filha, talvez por amor ou pelo buraco deixado pela morte do meu avô, anuíra a tudo, à simplificação, ao silêncio, até à usura, mas seu temperamento havia deixado bem claro a papai que, se ele sinalizasse qualquer menção de agressividade, não viveria muito. Eles haviam se casado logo depois que meu avô morrera por infecção generalizada devido ao cancro que contraíra nos puteiros e nas cocheiras de Guaiúba e Pacatuba, em cima e embaixo, de um lado e do outro da Aratanha, e só o fizeram porque, se ele ainda estivesse vivo, não o permitiria. De fato, namoraram em segredo, acoitados por vovó, que tentou fazer com minha mãe o que fazia comigo. Ela só não adivinhava que o temperamento medroso e adolescente do meu pai viesse a se transformar numa beatice azeda e numa anulação paulatina da mulher que minha mãe poderia vir a ser. Talvez, ele tenha se tornado assim para compensar o tipo de homem que meu avô era. Na tentativa de criar o seu oposto, assemelhou-se a ele, exceto na violência, a qual era tão típica sua que o fizera temido na região toda e, eu soube bem mais tarde, o havia tornado mais de uma vez contratado pelo prefeito para matar opositores, o que nunca lhe foi atribuído às claras devido ao temor criado pela sua figura alta e vermelha, seca e viperina. Dele herdei os olhos verdes e a chumbregagem, que já me latejava entre as pernas e viria a jorrar em xiringadas de sangradouro pouco tempo depois, quando vim dar em Fortaleza, à ocasião de minha fuga de casa.
    A cumeeira alta, ornada de morcegos amofinados, foi a testemunha. Mamãe chegou, olhou aquela desesperação de dois dias primeiro com piedade, com maternidade. Puxou o tamborete, sentou, esperou. Na ocasião da morte do pai, a culpa de havê-la desejado assombrava-a e lhe atravessava a barriga e lhe rasgava a garganta. Havia dor e amor em seu olhar, quando eu o encontrei. No meu, onde ela imaginara encontrar um semelhante ao dela, surpreendeu-a o medo. Mamãe não era boba. Sertaneja, silente uma vida inteira de suas dores, havia aprendido a ouvir bem os silêncios alheios. Adivinhava traições, anunciava intenções de crimes, compreendia martírios. Era mulher de ouvir escutando com os olhos, com a pele, a temperatura daquilo que lhe diziam e a frieza do que lhe calavam. Súbito, carregou-se de outro silêncio, beligerante, ameaçador, um silêncio de mãe. Olhou-me de cima abaixo, arrastou-me para fora da rede e começou a me arrancar as roupas, ao que eu, também já versada naquelas necromancias femininas em meus dezesseis anos, ao não me opor, ao não me proteger, dizia-lhe que nada encontraria. Mas ela já sabia que ali existia outra filha, uma que traíra, que dissimulara, ela não sabia o quê, mas estava ali, na carne, mesmo com a presença do cabaço, havia já uma mulher ali, onde ainda não deveria haver.
    Gritou-me por fim todos os nomes. Ameaçou-me de morte. Trancou-me no banheiro, onde me encolhi encostada na parede da cisterna. Abraçada aos joelhos, olhei a cuia velha pendurada na parede, olhei as teias recentes ainda vazias de muriçocas. O banheiro era frio como o riachinho que dividia o terreno da casa com a mata que antecipava a Serra. Eu também estava fria. Ali, sem saber, já havia decidido um fim, também não sabia de quê, mas amanhã eu não seria mais eu mesma. Malu me cobrava os olhares, os silêncios, as pequenas manifestações do que eu viria a ser, e aquilo me enervava como um cabresto que me queriam pôr. Sua família nem sonhava, graças unicamente à minha proficiência na dissimulação, que nos azunhávamos no quartinho, cavando a pele uma da outra, buscando o gozo da primeira vez, poucas vezes reencontrado. Contudo, aquilo, ao mesmo tempo em que me atava, começara a me enojar pelo mesmo motivo, e esse binário de opostos, somado à morte de minha avó, foi o que minha mãe quase adivinhou.
    Acalmei, entrei na cisterna, coisa que já havia apanhado para não repetir — “E nos outros que vão tomar banho, tu não pensa não?” —, e me entreguei àquele frio até os ossos, esperando o que já sabia. Meu pai chegou, minha mãe lhe expôs o caso, longo silêncio dele. Apesar de ele vestir a tradição de usar as calças na casa, temia de certa forma as três mulheres que viviam ali. Protegia-se naquele silêncio masculino, patriarcal, onipresente mesmo na ausência. Mas nos temia. O silêncio era o seu jeito de ser homem e de ser pai de forma efetiva e definitiva: o silêncio, naquela casa, não deixava dúvidas. Eu não sentia medo, mas sim uma espécie de ansiedade. Assim como minha mãe, eu adivinhava, e precisava daquela culminância que mudaria tudo. Nem cuidei de desfazer o engano, e, se o tentasse, de nada adiantaria. Mesmo constatando minha virgindade, minha mãe estava convencida de que eu já era mulher, e foi isso que meu pai entendeu.
    — Maria Rita, se vista.
    Minha mãe, com minhas roupas na mão, a porta entreaberta.
    — Seu pai quer conversar com você.
    Pelo vão, vi meu pai sentado, já com o relho de dar nos jumentos pendurado no pulso direito. Imediatamente, lembrei minha avó, mas não com o desamparo de havia pouco. Lembrei as vezes em que ela me dizia, repetindo as orientações que dera à mamãe: “De homem não se apanha nem na putaria”. Arregalei os olhos, e o ódio me tomou inteira e me levantou da cisterna, ensopada, tilintando de frio. Abri a porta, nua como estava, e desafiei, a boca crispando as palavras metálicas, inesperadas, firmes naquele tremor. Eu era já alta, e meu corpo já havia se arroliçado na formosura e na força. Meus olhos, como os de meu avô, eram dois punhais de esmeralda apontados na direção do meu pai, que lhes sentiu a pungência e calou o próprio silêncio, engolindo-o seco e engasgando-se numa tosse de cachorro que o fez sentar de novo, a mão no peito, a cara amarela.
    — Venha! Venha! Venha, se for homem!
    A isso, minha mãe, a boca aberta, avermelhada de repente, entendeu. Ali havia, sim, uma mulher, mas de outra forma. Não pelas mãos nem pela jeba de um homem, como havia sido com ela e como ela intuía. Eu era a mulher que ela poderia ter sido, eu era a antagonista do meu avô, eu era a força que ela nunca teve, a força que roubaram à minha avó, D. Menininha, a força que havia nascido da liberdade do corpo e da aceitação orgulhosa do espírito.
    Durou um instante apenas. Ela correu ao meu pai, que arquejava o malassombro de ser impotente diante daquela mulher-homem, como que para acudi-lo, mas, em vez disso, arrancou-lhe o relho do punho e surrou-me gritando, como um porco em agonia, “Morre, morre, morre!”, e me batia cada vez com mais fúria. Como o escrúpulo havia cedido à animalidade, ela não escolhia um alvo, como acontecera nas poucas vezes em que me surrara, quando mirava minhas pernas e minha bunda. Nas suas convulsões de égua, acertou-me um olho, que vazou imediatamente, lacerou-me os seios, esfolando-lhes os bicos com a ponta do chicote. Meu pai, de boca aberta, apavorado, gemia infantilmente que ela parasse, que já estava bom, que eu já tinha aprendido. Ela não parava. Ensanguentada já, acocorei-me e lhe cedi as costas, que receberam uns bons minutos de lambadas. Quando tudo acabou, foi a sua vez de desfalecer, mas de exaustão. Caiu no chão ao meu lado e foi socorrida pelo meu pai, que a levou à cama deles, me gritando que lhe levasse uma água com açúcar. Eu ardia. Juntei o que podia dos panos que estavam ali, me arrastei até a arca onde guardava minhas roupas, vesti uma bonitinha, de que Malu gostava, era a que estava mais em cima.
    Hoje, relembrando esse dia, não sinto remorso do derrame que vitimou minha mãe nem da depressão que meteu o meu pai na cachaça e o levou a uma morte solitária, somente descoberta bem depois, pelo mau cheiro na casa. Nunca mais vi Malu, a única que me negou guarida depois de minha fuga. Dei-lhe à porta, mais molambo do que gente, ao que ela gritou, primeiro de terror, depois de medo, “Vai embora, sua louca, meu pai tá aqui, vai embora!”. A bem da verdade, eu não havia ido a ela por motivos românticos. Hoje eu sei disso. É que a dela era a única casa com cujo endereço eu atinara, de tão esgarçada que estava. Seus gritos me despertaram, e o meu olho bom deseclipsou-se daquela sangria. Meu corpo vermelho de sangue debaixo do vestido amarelo me deixava com o aspecto de um enorme crisântemo no batente alto daquela casa. Passaram, me viram, me socorreram, quiseram prender meu pai, e só não o fizeram por se apiedarem daquela sua viuvez imediata. A tragédia virou causo, e falavam de minha mãe como de um fantasma, uma visagem que vinha surrar as filhas desviadas por macho. Sim, porque, para todos, aquilo havia sido por causa de um macho.
    Se me perguntassem hoje, tantos anos depois, eu diria que fora justamente pelo oposto. É uma pena que não haja ou eu não conheça uma palavra que signifique o oposto de macho. Não, não é fêmea nem é mulher. Homens e mulheres não são opostos, eu sei, provei ambos. São apenas dois universos diferentes, com um balanceamento diferente de forças e magnetismo. Entre os corpos celestes, o vácuo é o mesmo para os dois. Não, não faltava em meu pai a masculinidade que abundava em meu avô. Tampouco, havia em mim um excesso de mulher do qual carecia minha mãe. O que havia naquela casa era uma despolarização, uma desarmonia, uma balança corrompida que igualava a desigualdade de três contra um. Havia um organismo guenzo, uma deformidade da qual eu sou o único fruto e a única sobrevivente, condenada e abençoada a ser o oposto de mim mesma em cada corpo que possuo e ao qual me entrego. Justo eu, que nunca me neguei no espelho, vivo hoje a eterna aventura de me descobrir sempre diferente, sempre outra, como se fosse a mim mesma que eu buscasse nesses corpos. Mas eu não quero isso de me encontrar, não. Tomara Deus que, em vez disso, eu encontre de novo D. Menininha, fumando seu cigarro misterioso, enxuta mesmo sob aquela minha saudosa chuvinha serrana, sorrindo banguela um deboche qualquer, que eu completaria com uma gaitada que nos irmanaria e encaixaria de uma vez por todas e para sempre.

14/12/19

domingo, 8 de dezembro de 2019

O MILAGRE DE SANTA CLARA


    — Olha aquele um: não foi marcado. Feliz, sem marcas, quase santo. Nesse aí, a vida errou o tiro.
    — A vida não mata com bala não. Isso é sonho, Francisco. A vida mata lento, e é com veneno, e veneno no homem pode ser na veia ou na ampola. Esse não tem cara de quem porta porque administra.
    Sempre achei que era branca a pessoa da morte. Francisco ria disso e me dizia que a vida é que era branca, e os homens a sujavam. Esse outro lado que jamais atingiria me divertia nele. O amor é algo que também mora nesse outro lado. Ele era cheio de sorrisos venturosos, um peito de passarinho. Dizia em meus ouvidos que toda melancolia tinha o seu mel, e que eu era a “sua melancolia”. Francisco era um ponto brilhante que eu orbitava encolhida, enegrecida de sombras e crateras carbonizadas.
    Olhei de novo o homem, mais atenta, enquanto Francisco me recitava versinhos do Jeneci. Realmente, ele parecia uma versão definitiva e irretocável do Francisco. Era velho sem ser gasto, era branco e iluminado, andava como se se espalhasse pelo caminho e se tornasse mais completo a cada passo. Acredito que os polos, as extremidades de tudo, de alguma forma se encontram num paradoxo perfeito em algum lugar. Se aquele homem era, como dizia Francisco, um não-marcado, ele era, segundo eu mesma, todas as dores juntas. Contudo, o que era, naquela situação, diferente de nossa habitual discordância das coisas era que eu não acreditava que as marcas nele eram dele. Parecia que essas marcas eram aquilo que ele espalhava, tornando-se mais belo à medida que regava o mundo das dores, sombras e crateras que eu conhecia tão bem.
    Francisco, ele, sim, era um santo. Conversava comigo como se eu fosse um bichinho, punha flores em meus cabelos no final de um dia de trabalho. Aquela semicalva também parecia a do Santo, o Outro, e eu gostava de fingir arranhá-la com minhas unhas. Foi ele quem me ensinou a olhar o sol na hora certa, a tomar cerveja na hora certa, a fazer amor na hora certa. Talvez fosse isto o que me dificultasse amá-lo: não me sentia transformada, mas sim consertada. Aquele excesso de luz me aniquilando a escuridão acabava por tirar de mim o que poderia me fazer sentir-lhe amor: a necessidade. Francisco era onipresente. No universo, a escuridão é onipresente. A luz é que é pontual como postes iluminados numa estrada noturna e sertaneja, saindo ou entrando nas cidades. Naquele universo franciscano, a luz era insidiosa, e eu era obliterada em vez de iluminada. E eu sabia que não era assim com aquele velho. A luz que vinha dele não me obscurecia; eu era atraída por ela. Aquele homem branco era, sim, a morte, eu sabia. Sabia porque, quanto mais eu o olhava, mais eu mesma eu me sentia, e era tudo de uma claridade que não me matava, como a de Francisco fazia, mas que me revelava. Enquanto Francisco ia me contando das cores do sol na linha do mar atrás de mim, servindo como assento no qual me recostava na Ponte Metálica, eu ia me sentindo mais nua e distante, olhando para aquele homem branco passeando calmo na noite que purpurejava o céu crescente diante de mim. Aquele homem era a morte porque não me matava.
    — Francisco, eu preciso andar. Vamos até o Joca? A gente vai pela areia, molhando os pés.
    Isso era entrar na noite que entrava na cidade.
    — Vamos. De lá, a gente vai pros barcos, talvez ainda tenha camarão.
    Incomodou-me um pouco ele aceitar. Tinha a esperança de que ele dissesse não, e eu diria que tudo bem, que iria assim mesmo, que ele poderia voltar, que ele não me fazia falta, que eu não o queria. Encandeada, eu fui. Sabia que o velho tinha ido por ali. Sabia que eu tinha esse dom de rastrear gente, de farejar gente igual a mim. Talvez conseguisse. No mar, ele não entrou, estava em roupa de passeio. Há quem se banhe à noite, ainda mais naquele novembro quente dos infernos. O mar de Fortaleza tinha essa propriedade de esquentar o frio e resfriar o calor, além de ser um limite que só transpassam os barcos e os suicidas, e ele não era nenhum dos dois. Por que eu queria alcançá-lo? O que eu faria, o que eu diria? Diria? “Oi, boa noite, o senhor é muito bonito”. Ele não era bonito; era outra coisa. O que eu sentia era outra coisa. Não o queria como homem, não lhe cobiçava o corpo. Eu queria mesmo era perguntar “Oi, boa noite, o senhor me leva?”. Preciso ir. Preciso me escurecer de novo, preciso de mim negra para poder olhar as estrelas. E Francisco? Francisco era bom. Eu não o apagaria.
    — Você quer dar um mergulho?
    — Eu, não. Por quê?
    — Tá muito quente. Olha aquele lugar ali. Tem pouca gente.
    — Francisco, e se eu quiser, mas não contigo?
    — …
    — É, sozinha. E se eu quiser entrar, e não voltar?
    — Tá, tudo bem, a gente não vai. Não precisa apelar. É que a gente já andou tanto…
    — É, a gente andou muito. Aqui tá bom. Consegue uma água de coco?
    — E uma cervejnha?
    — Pode ser. Deve ter vendedor de camarão por aqui. Já vi gente vendendo ali, no Espigão.
    E se eu aproveitasse e entrasse mesmo? O homem branco deve estar lá… Ou chegando. Sei que andei mais rápido que ele. É quente mesmo, Francisco tem razão. Se bem que, sei lá… Estou respirando melhor. Nesse céu sem nuvens, já dá para ver as estrelas, apesar da cidade. Por que tem tanta luz em toda parte? Isso sufoca igual aos fios e aos postes e aos prédios. Igual ao Francisco. Sozinha, seria bom entrar. A água está boa, quase não há ondas. Aliás, nas ondas, eu penso melhor. Já consigo pensar melhor. O barulho das ondas não vira palavra, e a palavra atrapalha o pensamento, o verdadeiro pensamento. As palavras pesam como âncoras, como a que prende aquele navio lá… O barco lá longe, que, no mesmo corpo, espera e parte, sou eu, um estado fixo e itinerante, esta vontade de ir, indo, mas estática, ancorada, contemplando a jornada. Falar atrapalha a viagem.
    — Aqui, o coco. O rapaz lá vai trazer o camarão e as cervejas junto.
    — Então, pra quê o coco?
    — Ué, você pediu, ora. A cerveja foi ideia minha.
    — E o mar?
    — Olha aquele navio ali. Deve vir carregado de quinquilharia. Nessa recessão, é só o que se consegue vender. Deve ser bom ficar parado no mar, o vento, a espera… Sabia que, dependendo de onde eles vêm, eles podem esperar mais tempo pra aportar do que pra chegar aqui? Se vierem do Recife, com certeza… Olha, viuvinhas. Deve ser época de tatuí. Nem sei como ainda tem, com essa poluição.
    — Eles se adaptam, eu acho.
    — Olha aquele senhor de novo. Olha, sem preocupação, sem peso… Acho que não é rico. Gente rica anda torta ou dura, desfilando pra ninguém.
    — É…
    — Ué, não vai discordar não? Você tinha dito que o homem carregava veneno.
    — Acho que tem mais veneno no barco.
    — Opa, chegou a cervejinha, E o camarão. Valeu, irmão. Pedi pra você também, Clara. Olha, até o senhor lá vai dar um mergulhinho. Também, com esse calor…
    — É. Agora eu quero também. Vamos apostar quem nada mais longe?
    — E nossas coisas?
    — Deixa com o moço da cerveja.
    — Tá, mas isso de nadar…
    — Qualquer coisa, você me salva.
    — Certo.

08/12/19