Beira da estrada,
beira do mar:
um olhar abraça o outro,
e duas solidões se beijam
— duas partidas sem porto,
duas jornadas sem retorno,
dois confins.
E uma só ida para viver.
26/09/24
Este blogue se destina ao uso artístico da linguagem e a quaisquer comentários e reflexões sobre esta que é a maior necessidade humana: a comunicação. Sejam todos bem-vindos, participantes ou apenas curiosos (a curiosidade e a necessidade são os principais geradores da evolução). A casa está aberta.
quinta-feira, 26 de setembro de 2024
BEIRA
quarta-feira, 25 de setembro de 2024
O VOO DO ÚLTIMO PARDAL-AZUL
I
Onde, o espaço, Clarice?
No fim .
II
Sair para deixar entrar
e ir saindo de tudo
e ir indo
indo
o ido inteiro
até só restar chegar.
III
Sentia frio nos pés
mesmo no pingo do meidia:
pronde ia o sangue
que no corpo se calava?
Do céu, caía morto
sem nenhum alvoroço
e sem deixar saudade
o último pardal-azul.
IV
Falta um anjo conceder
o que deixou de me guardar:
na testa, nunca mais, o beijo;
no corpo, ausente o desejo;
e o sono, sem adeus a dar.
V
A casa acerta com o tempo
uma aposta de compadres.
Volta e meia, vem um vento,
e o casado se descasa
na volante de um instante.
Pelo chão, o lixo sorridente
futuriza o despassado:
não são mais cédulas,
na voragem do torvelinho;
é a paga do tempo,
que a casa sempre vence.
11/09/24
terça-feira, 27 de agosto de 2024
O GOSTINHO CERTEIRO DE "FARAWAY"
Em qualquer página de crítica cinematográfica, é possível encontrar uma sinopse semelhante a essa, e logo vem a sensação de que, excetuando-se as locações, é uma trama como dezenas de outras que se clonam por aí. Porém, o que me fez sentir que se tratava de uma singularidade no meio da mesmice foi a carga de verdade com que Naomi Krauss diz, com sua personagem, muito mais do que um texto de autoafirmação e de resiliência. Ela impõe legitimidade às condições que lhe são impostas enquanto filha, mãe, esposa, dona de casa e mulher, a ponto de tornar críveis a história, o drama, o romance e o humor do filme. Ela consegue dar aos próprios olhares, gestos, nudez e diálogos a medida certa de intensidade para que acreditemos que ela é o que a personagem precisa que ela seja: uma pessoa real, uma mulher de 49 anos num mundo que não a leva a sério.
Além disso, a diretora conduz o filme de modo a nos contar essas duas histórias (a do estereótipo e a da mulher real) com precisão e leveza, criando, assim, junto à cinematografia, às locações, à trilha sonora (pontualíssima), ao figurino (que, diga-se de passagem, consagram as transições de Zeynap) e à edição, um filme gostoso e quentinho, porém verdadeiro e honesto, desglamorizado, que deixa sua mensagem muito bem plantada ao final.
A despeito de se resultar de uma fórmula mais batida do que a da massa de pão doce, Faraway se laureia por nos proporcionar uma comida que alimenta e que desperta a vontade de comer novamente daquela “novidade”, que nada mais é do que uma sobremesa deliciosa e honesta, preparada com a intenção de fazer o espírito sorrir, como deveriam ser todas. Que pena que o cinema de entretenimento tenha se esquecido de que as melhores refeições são aquelas que nos fazem sentir em casa, e não em um shopping center. Assistam acolhidos.
27/08/24
domingo, 7 de julho de 2024
A FOGUEIRA INVISÍVEL
a fogueira invisível
traz as chamas multicoloridas
flameja ocra e vermelha
pungindo ardor
na íris vária e escancarada
porém
a grande noite é a todos
espetáculo melhor que o incêndio
e a estrela distantina
deu de sequestrar todos os olhos
ascendem nela sublimíssimos
desatmosferizam-se purificados
projetam-se na matéria escura
para longe do mundano
e do escrutínio terrenal
que a pele inquere ao cérebro
a todo o tempo
— olha! que é?
a fogueira invisível
coitadinha
não tem quem lhe sente ao redor
e lhe asse estórias
não tem quem lhe sinta o calor
não tem quem se lhe sirva na pele
nem quem lhe ceda o frio
em sacrifício
queima e arde
inexistente na noite enorme
ignota na transcendência dos corpos
e inútil para o além insensível das almas
mas há no chão
e há no lenho e no fumo
e no ar dos mosquitos
há pequena
na noite pequena
das coisas pequenas
a fogueira invisível
compõe com o mato inútil
com a árvore macha, a pedra de seixo
com as cigarras e os grilos
a multitude das ausências
que permite às coisas inúteis
a inutilidade de serem belas
e o desgosto orgulhoso
de existirem sujas
e puras
07/07/24
quarta-feira, 26 de junho de 2024
DICIONARIZAÇÃO
A palavra surge como sempre se processou: retratista, descritiva, exploradora, ousada, irresponsável. Contudo, rareia. Deve ser parte do fim da cadeia de eventos sobre os quais ela tem tentado iluminar sentidos, ou apenas um cansaço de existir sozinha, tendo nesse fim sua principal razão de ser. A palavra diz sem dizer há tempo demais, em sua opinião, talvez. Entretanto, como aqui, ela falha e tem falhado, criando mais confusão verborrágica do que a reflexão, provavelmente, precise. Já o pensar, sozinho e autônomo, sem sequer recorrer à memória e aos traumas, encorpa-se inconfundível, utilizando-se destes mais como adereços, sendo ele mesmo pai de sua própria pele. Ele se faz no desfazimento. Cria-se na desconstrução. E, nesse trânsito, no tempo dado à palavra para que ela o converta em corpo, o que fica são, no máximo, rastros, uma pedra virada pelo calcanhar, uma capoeira, uma vereda breve, tornada logo pelo mato no nada verde da inexistência de forma.
Então, deixa-se para trás, passo a passo, o que motiva a palavra: a vida para além da experiência, o registro que, aos outros — o alheio, o relativo, o amigo, o circunstante —, certifica, informa e ressignifica a própria vida. Obsoleta-se vagarosamente a palavra, e o mundo que ela descreve vai perdendo a necessidade, assim como se insignificam os seus eixos mais profundos: os relacionamentos, as filiações, os afetos e desafetos. O pensar torna o viver uma espera por ondulações de diferentes intensidades e comprimentos que afligem os sentidos e tangem a vida para cada vez mais longe do próprio viver. São ermos em que a palavra, vendo-se inútil, recorre à sua subsequente única forma possível: nomes para as coisas; verbos para as ações; adjetivos para os estados; advérbios para os modos. O enorme mausoléu do vocabulário, o cálcio dos ossos das palavras. O verbete. O lexema.
A palavra se esvaece e dá-se a compor túneis e câmaras, às quais recorre primeiro como abrigo, depois, como residência, para, enfim, passar à existência de dicionário. Dicionários são túmulos: um memorial de esqueletos descarnados, uma aula de anatomia que desconsidera as vidas que a palavra encarnou.
Nessa caverna, o então pensamento — agora fantasma —, livre da necessidade alheia de que tivesse forma, segmentos, sintaxe, livre do próprio pensar, oscila sem juízo ou fim, explorando a profundidade sem se dar conta de si, do tempo e dos limites — foi vária a palavra. No fim, os termos são outros: o próprio fim, assim como foram ela mesma e a vida, é só uma palavra.
26/06/24
terça-feira, 25 de junho de 2024
INESCAPÁVEL
o dia está lindo
não há mortos nas ruas
nem abandonos nos bares
todos os animais têm seus donos, e todos os bebês, seios
não há fome nos pratos
nem pobreza nas mãos
os carros, gentis, trafegam com o único ruído inevitável
os escritórios acolhem
as escolas acolhem
as igrejas sublimam
e tudo, cada qual com sua paz, resulta
na harmonia e na intransmutabilidade das almas
com os corpos
o ódio, a miséria dos homens,
a soberba e a egolatria
são contos em histórias de muito longe,
quando o mundo era apenas aqui
e nada era possível
hoje, o dia é lindo
e a vida é a grande certeza
inescapável
07/05/24
domingo, 23 de junho de 2024
O ESPELHO DA SALA
o espelho da sala precisa de mim
por isso, permito
que me desfragmente no conjunto imperfeito
das partes que, tão cuidadosamente,
rendi ao despedaçamento
de ir esquecendo-me
aqui e ali
no alheio dos cromos de espelhos estranhos
onde deixo refletidas
coisas que vou deixando de ser
todas, inúteis
talismãs num relicário
nenhuma, digna de fé
mas o espelho me agride
o espelho da sala me comprime
à unidade compreensível e inequívoca:
uma imagem para um nome
um papel-carbono certificante
de uma certidão de nascimento
de pequeninos diplomas
de menores ainda documentos
incontáveis e obsoletas células cartoriais
componentes do reflexo
de que precisa tão desgraçadamente
o espelho de minha sala
verifico as aranhas e suas teias
o mofo e o grelado
as gretas e os cupins:
tudo está conforme
asseio o cabelo e a barba
enchapelo-me
asseguro-me de meus patuás
e o abandono como de costume
mas o espelho sempre me aguarda
no escuro ou no claro de minha sala
no ofício pueril de precisar de mim
como se em si me resguardasse
como quem sabe, mais que eu,
a preciosidade de existir
22/06/24
domingo, 9 de junho de 2024
LAPSOS
a memória é isto:
fantasmas de afetos e desafetos
em corpos que não se lembram mais de mim;
é existir em lugares
que não existem mais;
é ser um país de apátridas
em exílio;
é a súbita queda findando um sonho,
que não é súbita nem é queda,
mas continua caindo e caindo;
é dormir sem remissão;
é acordar sem consciência;
é esmolar sem esperança;
é viver sem a matéria;
é morrer sem a matéria
e deixar que a matéria me resgate;
é um corromper-se sádica
em punição a mim;
é um ser exata e maquinal
em detrimento de mim;
é, quando o agora colapsa,
o amontoado de lapsos
de todos os colapsos anteriores;
é, por fim, um disfarçar-se
em pensamento intrusivo,
em ideia desastrada,
em consideração absurda,
em projeção fantástica,
em autoanálise impiedosa,
em fantasia de poder,
em escape,
em fuga,
em mim.
08/06/24
terça-feira, 21 de maio de 2024
NÃO ESPERES DEMASIADO DO FIM DO MUNDO
Termos no Brasil uma dimensão geográfica continental nos faz esquecer como deve ser a organização social de países que são menores que muitos de nossos estados. A Romênia tem 238.397km2 (menor que o Piauí), por exemplo, e é um dos países mais pobres da UE. Isso posto, parece um disparate qualquer comparação justa entre a percepção de nacionalidade deles com a nossa, ou até mesmo as percepções de lutas e conflitos de classe, pois nós, dado o nosso tamanho, temos uma quantidade muito maior de variáveis sociais e culturais, logo temos uma identidade nacional, social, política e econômica muito mais complexa que a deles, certo? Nem tanto.
“Nu aştepta prea mult de la sfîrşitul lumii” (“Não esperes demasiado do fim do mundo”), uma coprodução de Romênia, Croácia, França e Luxemburgo, de 2023, acaba por tratar de temas como a crise do capitalismo e a exploração trabalhista; o conflito geracional e político interno e externo; o absurdo da internet e a sociedade do espetáculo; o racismo, o machismo e a xenofobia; e, principalmente, o abismo entre os indivíduos e a sua própria sociedade, numa alienação de sua cidadania. O filme é uma comédia irônica e sarcástica, porém de um humor muito mais reflexivo que risível. O diretor e roteirista Radu Jude conduz a narrativa num estilo quase documental, em que seguimos durante as suas 2h43min as ações de Angela (Ilinca Manolache), durante quase dois dias no ano de 2023, dirigindo pelas ruas de Bucareste. Ela é assistente de uma produtora de filmes e está encarregada de entrevistar vítimas de acidentes de trabalho para um documentário sobre segurança do trabalho bancado pela própria empresa em que estas trabalham e a qual, por exploração e negligências, foi a responsável por eles. Ela própria é também explorada, tendo de trabalhar por até 20 horas diárias como motorista e faz-tudo da produtora. Durante essa rotina, Angela grava vídeos para o TikTok em que o personagem criado por ela, Bobiţă (pronuncia-se “Bobitsa”), faz críticas em tom racista, misógino e xenofóbico a fatos e pessoas relevantes e irrelevantes, todas elas hiperbolizadas ou, como ela diz, como “uma caricatura exagerada” da realidade.
As críticas vão desde a morte da Rainha da Inglaterra, o neonazismo austríaco e ucraniano e o ex-ditador Nicolae Ceaușescu à venda de livros nos sinais e ao caos urbano e à superficialidade da sociedade contemporânea. Paralelo a isso, o filme mostra a trajetória de outra Angela (Dorina Lazār), no ano de 1990, durante os mesmos quase dois dias, nos mesmos lugares onde transita a primeira. Ela é taxista numa Romênia mergulhada no atraso e, nesse período, conhece o seu futuro marido e pai de Ovidiu, que acabaria por ser a vítima escolhida para dar o seu depoimento no documentário de 2023. Nesse contexto, as vidas das duas Angelas se cruzam e o filme nos mostra que existe mais em comum entre elas do que a superfície das mudanças sociais, políticas e tecnológicas poderia permitir. Aqui, dois adendos: primeiro, Radu Jude mesclou fragmentos de um filme de 1981 chamado Angela merge mai departe (“Angela vai mais longe”, em tradução livre), com Dorina Lazār (então com 41 anos), dirigido por Lucian Bratu e roteirizado por Eva Sârbu, cuja história em flashback é o ponto paralelo ao qual se dá a principal; e segundo, ele manteve a mesma atriz na narrativa de 2023, agora com 83 anos, dando sequência ao drama de 81.
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O diretor conta uma história numa cadência que pode (e vai) entediar bastante o espectador que espera um filme comum, coisa que esse filme não é nem de longe, apesar de contar histórias ordinárias de pessoas ordinárias que poderiam acontecer em quase qualquer capital do mundo. Bobiţă é criado com filtros masculinos caricaturescos do TikTok, e suas interferências na narrativa se assemelham bastante às da figura arquetípica do pícaro, da literatura espanhola, ou à do parvo, no Trovadorismo, ou seja, são intervenções que, além de pontuá-la com humor ácido, marcam o ritmo da própria narrativa. Contudo, o ordinário da vida das Angelas é imenso. Cria-se uma identificação com a nossa própria vida ordinária a ponto de dizermos, em alguns pontos, “sim, é assim mesmo”, ou “olha, eu já passei por isso, do mesmo jeito”. As Angelas são pessoas comuns de vidas comuns, sem nada de especial nelas que valha a pena ser contado. Entretanto, o diretor/roteirista nos mostra que é nesse ordinário, nessa malha de fios todos iguais, de um tecido cinza sem estampas (a história da Angela de 2023 é narrada em P&B, a de Bobiţă é em cores de baixa resolução, e a da Angela de 1990, com uma paleta que nos remete aos nossos anos 1970), que se dá a grande profundidade dos temas desse filme: a inevitabilidade do fim da sociedade causado por quem tem poder sobre ela; a inescapabilidade de um indivíduo dentro de um “rebanho”, por mais esclarecido que esse indivíduo seja; e a perpetuação do ciclo que culmina nesse fim.
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“Não esperes demasiado do fim do mundo” é uma obra-prima com um corpo moderno, com cicatrizes e úlceras modernas, que fede modernamente, mas tem um DNA atemporal e comum a todos nós. Um sistema massacrante, uma estrutura de preconceitos e uma angústia onipresente podem ser, como ele nos mostra, pontos semelhantes entre povos que compartilham muito mais que uma origem linguística comum. Não somos os mesmos, não partilhamos as mesmas culturas, não sofremos as mesmas dores, mas, ao mesmo tempo, somos, partilhamos e sofremos. Um pobre é um pobre, e um poderoso é um poderoso em Teresina, Bucareste ou Fortaleza. Essa obra transita pelos paradoxos e semelhanças entre culturas da mesma forma como as Angelas pelas ruas de Bucareste: uma, com seu táxi; outra, com sua minivan; ambas, exaustas e maquinais na rotina de serem mulheres numa máquina de moer gente que é o capitalismo patriarcal. É genial, sendo ordinário; é atual, sendo antiquado; somos nós, sendo elas. Assistam descansados.
sexta-feira, 17 de maio de 2024
NÓS LÁ EM CASA
(Clique nas imagens para ampliá-las e na legenda, para acessar a página de origem.)
Em 1978, conjuraram-se as vidas e as carreiras de Luhli e Lucina no seu primeiro elepê, intitulado Luli & Lucinha – Nós lá em casa (ambas mudaram os nomes artísticos posteriormente), gravado nesse ano, mas lançado em 1979 e vendido mão a mão pelas duas, que rodaram o Brasil numa Kombi adaptada, com a vida, a família e os sonhos nas costas. Luhli e Lucina são pioneiras em muitas coisas. Nós lá em casa foi o primeiro disco completamente independente gravado no País, bancado inteiramente pelas duas, que venderam na estrada mais de 50.000 cópias somente nesse ano. Elas foram o primeiro duo de cantoras/instrumentistas com total protagonismo no palco, com os tambores à frente da banda, ogãs que eram. Principalmente, elas foram as primeiras artistas brasileiras a peitar e sobrepujar as gravadoras, as quais decidiam quais músicos teriam de ser silenciados para que se lucrasse com aqueles que eram “eleitos” para o sucesso.
O disco é íntimo, confessional, de uma autoralidade pouco encontrada de forma tão autêntica e legítima. Elas viveram naqueles primeiros anos de dupla a experiência hippie totalmente raiz, e não havia intenção maior que viver a música no sonho de verter nela a própria vida. Como disse a própria Luhli, as músicas são como o vento e o mar, e a experiência de ouvi-las é também multissensorial, tais as evocações que elas atingiram não somente com as letras, mas também com o casamento perfeito entre arranjos instrumentais e vocais, além dos timbres e das técnicas desenvolvidas para, como disse Luhli, “duas parecerem muitos”, quando cantam.
Esse disco tem a capacidade rara de transportar para uma atemporalidade o apreciador que tem vocação para se deixar ser passageiro, mas não se limita a ninar ninguém: ele é uma proposta, uma provocação à viagem. Muitas vezes, é a Kombi; noutras, a estrada; mas gosto de ouvi-lo como a um destino. Maravilhoso, o disco, maravilhosas, as duas, desde sempre.
17/05/24