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quinta-feira, 6 de março de 2025

DO LADO OPOSTO DO MAR

Raimundo Cela
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    Lembro de ouvir meu pai dizer, num desses diálogos que não têm âncora no tempo, que eu tinha uma bomba na perna esquerda. É dessas coisas que só pai nota e que só pai diz. E foi dita na hora certa, pois ficou. Atestou-me. Eu, apesar de destro, era um canhoteiro, decretara meu pai. Muita coisa importante virou vento, muita virou furacão: assim é a palavra, quando o portador é alicerce, coluna e teto. O vento motiva a vela, afresca a pele, seca a lágrima. Torna o dia um dia bom. O furacão averte o mar e cria homens de terra, de pedra, homens-recife. Dos ventos, eu me lembro disso e de ouvi-lo dizer coisas como “o mar não tem cabelos” e que nunca me deixaria afundar. Já aos furacões, resisto, e só.
    Que homem só foi o meu pai. Que homem só eu me tornei. Minha perna esquerda, que hoje é o meu tronco, o meu mourão, ainda me suporta. Na beira do mar, é ela que me ancora. Fateixa de pau-e-pedra, guardando as minhas partidas. Ainda assim, quando olho o mar, procurando não ver ninguém, eu os encontro no sargaço, na maresia, nas vagas. É na ausência que estão meu pai e todos os meus fantasmas. É no obscuro das saudades que arrebenta o furacão de quem não partiu.
    Digo isso da perna esquerda porque, há dias, as dores da direta me dilaceram. Há uns quinze anos, tive nesta um derrame que me custou a sustentação e causou o subsequente definhamento muscular. Além disso, quando tinha uns sete de idade, meu pé direito foi moído pelos aros de uma roda de bicicleta e nunca teve os ossos soldados corretamente, o que me fez conviver com a dor de ficar em pé desde então. Bem recentemente, talvez resultado da má prática de esportes, a articulação do meu ombro direito vive em eterno estado de inflamação, o que me limita os movimentos consideravelmente. Além do mais, tive as duas fraturas na mão direita: uma, resultado de um jogo de vôlei de rua; outra, de uma surra que dei num dos dois únicos ladrões que me roubaram. Isso, sem levar em conta os inúmeros acidentes com facas, anzóis, ferramentas e outras pequenas mutilações ao longo dos anos. Tudo, do lado direito. Agora, espasmos elétricos de punção e fogo na perna direita me agoniam e me fazem pensar se não é nesse lado, à guisa de tiracolo, que carrego meus furacões. Ou se é por aí que eles me carregam. Será que é o mar, o mar alto, a rota aonde eles me fustigam? Será que a minha firmeza, que me finca e sustenta, não me estaria negando o desdobramento de um confronto real com a procela? O que eu seria depois de todos os embates e massacres que nunca me foram impostos lá, após a arrebentação, passando a costa, no além da ausência dos espíritos?
    O que meu pai talvez sentira e nunca me dissera é que aquilo que resta ao homem que evita o mar é a erosão. É ir se desmanchando em areia e fazer parte do chão da praia, parte do mar, parte da terra. Talvez, por outro lado, existam muitos mares menores onde navegam os homens que são o que são, e nada mais: funcionários, pais, bêbados, vagabundos — homens de poucas metáforas. Ou ainda, que o mar grande seja uma maneira de existir ausente, um lar reservado apenas para o depois.
    Eu amei o mar por meio do meu pai. Pela sua mão, perdi e ganhei o medo dos afogamentos; pelo seu olhar, aprendi o respeito e a medida segura de atrevimento. Porém, hoje, aqui, seguro, sou fustigado pelos furacões que deveria haver apenas lá. Gostaria de lhe dizer que, como na maioria das coisas de que me lembro dele e das quais aprendi com ele, existem no homem e na vida dois lados, duas forças que se encontram sem muito conflito, mas cujos violência e desastre se acentuam conforme nelas se adentra. Sobretudo, quando essas forças são menosprezadas no cotidiano, na paciência com que a onda converte o recife em areia fina, na agressividade imóvel de quem olha o mar dolorosamente.
    Sem esse modo de amar, contudo, o outro que eu seria — talvez sem dores, talvez sem senso — não saberia o que é esse cruzamento da fronteira divisória do homem: tudo que sei de mim foi costurado e ponteado pela dor de permanecer e pela angústia de não partir. É possível que essa seja a condição real do homem e que não existam marinheiros, exceto em fantasias e delírios de poder. É possível, portanto, que a natureza da vida sejam este fremir de nervos e tendões, estes ossos tortos e toda a sorte de concretudes físicas que me ancoram na rocha do cais.
    Entretanto, é também possível que este modo de amar o mar seja a única coisa que possibilite a existência do mar. O largo imenso donde olho o mais imenso; e, nesse mais imenso, o verdadeiro outro lado. Não os sei, mas suponho os ventos que sopraram meu pai. Todavia, é da natureza dos homens sós, isso eu sei por certo, costurarem eles mesmos os farrapos de suas velas ao mesmo tempo em que trançam os cabos de suas fateixas. Resistir também é um modo de navegar.

06/03/25

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

POLÍTICA INTERNA

Fonte da imagem: @iwanttoleaveok (Instagram)
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é difícil criar um país sobre outro
sempre resta alguma edificação
uma estrutura de linguagem
um nadinha de cultura

o povo teima
a terra teima, até a fauna teima

deixar continuar a ver se melhora
é a covardia que renite
como única forma possível de apaziguamento

ou isso
ou virar cometa
bomba H onipresente
peste e obliteração

pensar que ser país é democracia, diplomacia
e outras louçanias
não cola mais na catastrófica vida em comum
lugar de despotismos e ditaduras imperiais

mas aqui se teima
e aguardar no sofrimento o cansaço da guerra
tornou-se o que se tem para hoje
e amanhã
e depois

a ver se há um modo mais digno
de não perder fronteiras
de não queimar constituições
de manter os invasores visitantes
a quem, um dia, há de se dizer adeus

24/02/25
 
P.S.: Poucas coisas são mais empobrecedoras em literatura do que explicar as alegorias de um texto, mas, dadas as circunstâncias sociopolíticas atuais, achei necessário explicitar aqui que a “política interna” de que trata este poema é uma metáfora para as angústias pessoais de um indivíduo a cujas sanidades mental e emocional a vida em sociedade e as crueldades e atrocidades do cotidiano têm se tornado fatores nocivos, ou seja, não há nele nenhuma expressão de defesa de ditaduras, nem de xenofobias, nem de nenhuma conduta reacionária, menos ainda de apologia ou de incentivo a elas. Trata-se de um poema íntimo, que aborda as dificuldades que uma pessoa tem de lidar consigo mesma e com as circunstâncias em que se insere. A codificação extrema nada mais é do que marca de estilo e assim deve ser considerada.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

AGORA, A NOITE

Criança amazonense no embalo da rede. - Divulgação/Caminhos da Reportagem (Modificada.)
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Bebo o café que é possível
com o pó da manhã e a água das horas.
Lá fora, tudo cidadeia,
e o espaço me comprime em minha casa verde,
velha e resistente.
Os urubus que me vigiam
pragalham da carne imputrefata
sitiando todas as vias de felicidade possível.

Não há madeira em minha porta,
ou horizonte, na janela.
Minha cortina de trepadeiras ainda tenta;
minhas espadas de Ogum ainda tentam;
e as de Iansã, também;
mas, aqui, neste quintal de trasantontem,
adormeceram já todas as guerras

— a paz que resta é mofo e cupins
e mijo de gatos nas calhas.

Amanhã, quando o sol me encontrar,
será de nós ambos o ocaso:
tempo em que nos deixaremos finalmente anoitecer
da noite que veio me buscar quando menino,

quando o paquete de minha rede me embalava sem fateixa
pelo Estige e pelo Pacoti,
pelo espaço e pelos abismos,
sem sonhar que as tempestades dormiam comigo
fetalmente, no porão sem escotilha.

Na casa velha, as tralhas acordarão limpas,
embaladas no porão da jangada que ela se tornou.
Um mar vesperal crepuscula prestes,
e um terral desancora a terra
de que já não sou mais feito.

Agora, a Noite.

30/01/25