Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

domingo, 30 de março de 2025

RASCUNHO DE ÍCARO

Pink Floyd - Us and Them
(Clique no vídeo para abri-lo em nova aba e na legenda, para acessar a página de origem.)

Com que mais foste, em tal estado,
a marca finda em tua casa,
deitaste a mão em planta rasa,
e um novamente é rabiscado.

E, traço a traço, lado a lado,
ergueste a ideia sobre a brasa
e deste adeus à velha casa
igual quem mora em chão roubado.

És todo sonho, és todo fado:
a pena antecedendo a asa,
batendo como quem se atrasa,
num céu que azula imaginado.

Donde vieste, um não! e um brado.
Onde acabaste, nada abrasa.
E, ao Sol, que acima te desasa:
renasces ar, sem ser alado.

30/03/25

sábado, 22 de março de 2025

TODO MUNDO MERECE UMA “GOIABEIRA MARAVIÓSA”

(Uma crítica ao filme Chico Bento e a goiabeira maraviósa.)

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

    Talvez o principal motivo que me leve a escrever sobre minhas impressões de um filme seja o grau de afeto em que ele me põe. “Afeto” vem do latim affĕctus, particípio passivo de afficĕre, e significa “colocação de algo ou de si mesmo em um certo estado” (bom ou mau), e daí, “afeição”, “afeito” (ou “contrafeito”), “aficionado” etc. Pois bem. Já é meia-noite e 57 minutos, e só agora eu consegui domar o suficiente meu estado de euforia e de recuperação da inocência infantil em que Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025) me colocara e posso escrever este artigo com alguma objetividade.
    O cinema “infantil” nacional sempre se apresentou de forma, no mínimo, questionável. Se analisarmos as duas principais fontes desse subgênero, que são os Trapalhões e a Xuxa, e mesmo considerando as épocas e os contextos socioculturais dos trabalhos resultantes, temos produções que variam entre um romance brega disfarçado de pastelão de péssimo gosto e um pastelão descarado, de pior gosto ainda, ou seja, temos filmes com intenções e estéticas “infantis”, porém com inúmeras características de comédias para o público adulto, a maioria, desgraçadamente realizada. Parece que o comprometimento principal desse segmento era mais com as figuras públicas de seus atores, fossem estes apresentadores, comediantes, humoristas, cantores ou dançarinos, que com aqueles que deveriam ser a finalidade desses filmes: o público infantil. Algumas dessas obras e de outras, tentando atingir esse público, tornaram-se infantiloides, visando a crianças arquetípicas, imbecilizadas pela idealização feita por roteiristas, diretores, produtores e também atores.
    Contudo, nada disso ocorre com essa “maravía” que é Chico Bento e a goiabeira maraviósa. Estava esperando assistir a esse filme desde que vi o primeiro trailer, ano passado (ele começou a ser filmado em 2023). Na ocasião, a primeira coisa que me chamou a atenção foi o ator principal, Isaac Amendoim, que não me deixou dúvidas de que ele, sim, era o Chico Bento verdadeiro, mais que o de seu criador, Maurício de Sousa. Esse menino ganha a gente na primeira cena, antes mesmo de abrir a boca. Mérito dele, óbvio, mas também dos escaladores de elenco Luciano Baldan e Fernanda Schaefer, que escolheram muito bem todos os atores mirins e adultos do filme. O roteiro, escrito por Elena Altheman, Raul Chequer e pelo diretor Fernando Fraiha, também é responsável pela precisão das interpretações, que acertam em cheio em fazer um filme infantil sem a estupidez com que alguns realizadores (gringos ou conterrâneos) imaginam seus públicos-alvo.
    A história tem como enredo o impacto da construção de uma estrada asfaltada proposta por Dotô Agripino (Augusto Madeira), que é anunciada como uma proporcionadora do progresso a Vila Abobrinha, pois substituiria as vias de terra esburacada, conectaria o lugarejo e todas as propriedades dos moradores ao seu redor com as fazendas dele e viabilizaria um aumento do comércio da produção geral, incrementando o lucro de todos, mas que consiste na realidade em uma estratégia de Agripino para explorá-los, pois ele aumentaria imoralmente o custo e a quantidade do asfalto, sendo ele o único fornecedor de matéria-prima, maquinário e mão-de-obra. Além disso, a sua falta de escrúpulos levaria à destruição dos rios e de boa parte da natureza da região para a realização da obra, intento que ele havia ocultado de todos. Contudo, o verdadeiro deflagrador do conflito é a insistência de Agripino em derrubar a goiabeira pertencente a Nhô Lau (Luis Lobianco), árvore cuja semente foi plantada no mesmo dia do nascimento de Chico e com a qual este tem um vínculo não só lúdico e telúrico, mas, essencialmente, afetivo, tratando-a ele como sua “melhor amiga”. A partir daí, desenvolvem-se os principais temas do filme: a destruição ambiental em virtude de um avanço que beneficia quase unicamente o detentor do capital e dos meios de produção; o impasse entre o “atraso” atribuído à vida em comunhão com o meio ambiente e o “progresso” relacionado à urbanização; o telurismo e o valor da amizade; e a falta de comunicação geracional, fator que impede que os adultos considerem as perspectivas das crianças.

Nhô Lau (Luis Lobianco) e Chico Bento (Isaac Amendoim)
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

    Quase todos os atores estão na medida certa das personagens de Maurício de Sousa (que deu uma de Stan Lee e fez uma pontinha) e entregaram um texto quadrinhesco sem ser antinatural, deixando o espectador confortável. Isso acontece (acredito eu) em boa parte porque crescemos todos lendo e amando as revistinhas do Chico, e o filme respeitou bastante este nosso arcabouço cultural. São criados logo nas primeiras cenas não só um encanto com o “Isaac-Chico”, mas, principalmente, um vínculo afetivo com milhões de “chicos” que leram e releram e passaram essas leituras para seus filhos e netos (a personagem foi criada em 1961) de tal maneira que Chico Bento tornou-se um elemento identitário nosso, assim como Mônica, Cascão, Cebolinha e Magali. Os outros atores mirins se encaixaram muito bem nas suas respectivas interpretações, destacando-se Anna Julia Dias (Rosinha) e Pedro Dantas (Zé Lelé), mas quero salientar aqui a participação dos adultos. É comum vermos em filmes com personagens interioranas (especialmente, as comédias; principalmente, os infantis) uma estereotipagem agressiva que nos desconecta com o que eles poderiam ser. Atribuo isso em maior parte aos preconceitos de classe, de região e até mesmo de raça, mas também à escalação de elenco, que prioriza atores que se mostram limitados ao sotaque de sua própria região e que, quando se propõem a interpretar personagens “regionais”, fazem-no de maneira macaqueada, grotesca e hedionda. Claro que há exceções, porém, nesse filme, senti que houve uma bastante curiosa: por se tratar de personagens que já nasceram caricatas nas HQ, o limite que deveria, como de hábito, ter sido monstruosamente cruzado não o foi. Os atores adultos se mantiveram na linha entre o caricaturesco e o real, mas o fizeram com bastante generosidade. Luis Lobianco (Nhô Lau), Guga Coelho (Nhô Bento, este, um pouco exagerado), Livia La Gatto (Dona Cotinha), Augusto Madeira (Dotô Agripino), Thaís Garayp (Vó Dita), Débora Falabella (Professora Marocas), Taís Araújo (Dona Goiabeira) e os outros entregaram personagens tanto críveis dentro do espectro quadrinhesco quanto representativas de suas classes e região. Dessa forma, a trama, que é contada de uma forma bem simples e típica de uma historinha em quadrinhos, convence apesar da singeleza, pois o filme consegue o que todo bom leitor de HQ, no fundo, espera: “ler” um filme.

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la.)

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la.)

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la.)

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la.)

    E que filme bom tecnicamente! Produzido por Bianca Villar, Fernando Fraiha, Karen Castanho, Daniel Rezende, Marcio Fraccaroli e Marcos Saraiva, ele tem uma cinematografia caprichada (Gustavo Hadba, ABC), com uma paleta de cores vivas e ensolaradas, sem o exagero que, muitas vezes, filmes infantis tendem a cometer. A direção de arte (Marinês Mencio) se preocupou com os detalhes no limite entre o plausível e o cartunesco, ou seja, eu acreditei que todo o figurino (Leticia Barbieri) condizia com a realidade, assim como as locações e os objetos em cena, mas também não me afastei em nenhum momento da sensação de estar dentro de uma HQ do Chico Bento, o que, garanto, me grudou na narrativa o tempo inteiro. Até mesmo a inserção das sequências animadas em 3D e 2D (François Puren) no meio e nos créditos se alinha com a qualidade da obra, pois não rompe o fluxo do live-action, pelo contrário, a fusão é perfeita, justificada e motivadora da trama e não destoa do que este vinha apresentando. A edição (Daniel Weber, AMC) é bem feita, dando à gente o tempo certinho de cada ação, assim como as elipses entre elas, o que deixou as transições muito parecidas com as de uma HQ longa. A única ressalva que faço é à qualidade do som dos diálogos dos atores mirins, que se ouvem bem, mas não se entendem às vezes. Mesmo assim, apesar de ser uma pequena falha técnica, eu atribuo mais à naturalidade com que eles empregaram o sotaque do interior de SP do que a uma possível incompetência do som direto (Abrão Antunes).

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la.)

    Chico Bento e a goiabeira maraviósa deixou difícil a incumbência que me dei de escrever pondo um pouco de lado a subjetividade de quem ama aquilo que vê e se vê naquilo a que assiste. É um filme que me sobrecarregou de afeto desde o trailer, pois trata de alguns dos tesouros mais preciosos que carrego comigo: minha criança interior, minha identidade de menino da cidade que cresceu com raízes no sertão e minhas primeiras leituras, minha bacia cheia de revistinhas que meu pai, principalmente, comprava para mim. Porém, não unicamente por isso. É uma história que faz sorrir com a autenticidade própria dos espíritos simples um espectador que vive em tempos de horrores e flagelos, pois, apesar de se tratar de um embate da sordidez contra a inocência, ela desenvolve isso de modo inocente, além de singelo e muito bem-humorado. Em vários pontos, eu me peguei literalmente “maraviádo”, boquiaberto de riso e choro. Adulto, vi um filme que não fizeram para mim, mas que também fizeram para mim. Quando criança, produções assim, feitas na minha língua, não existiam, por conseguinte eu não existia no meu cinema. Entretanto, eu existia nas revistinhas, e foi aí que Chico Bento me acertou, bem no cerne do meu afeto de criança, ainda existente, mesmo que bem escondido, no coração do adulto. Mal posso esperar para mostrá-lo aos meus filhos e ver nos seus olhinhos que há um lugar que eles e eu coabitamos — uma Vila Abobrinha com um vizinho de boa alma, ainda que ranheta, possuidor de uma goiabeira onde podemos subir e roubar os melhores frutos de nossas inocências. Uma goiabeira “maraviósa”, enraizada no melhor de nossos afetos.
    Assistam “maraviádos”

22/03/25

quinta-feira, 6 de março de 2025

DO LADO OPOSTO DO MAR

Raimundo Cela
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar sua página de origem.)


    Lembro de ouvir meu pai dizer, num desses diálogos que não têm âncora no tempo, que eu tinha uma bomba na perna esquerda. É dessas coisas que só pai nota e que só pai diz. E foi dita na hora certa, pois ficou. Atestou-me. Eu, apesar de destro, era um canhoteiro, decretara meu pai. Muita coisa importante virou vento, muita virou furacão: assim é a palavra, quando o portador é alicerce, coluna e teto. O vento motiva a vela, afresca a pele, seca a lágrima. Torna o dia um dia bom. O furacão averte o mar e cria homens de terra, de pedra, homens-recife. Dos ventos, eu me lembro disso e de ouvi-lo dizer coisas como “o mar não tem cabelos” e que nunca me deixaria afundar. Já aos furacões, resisto, e só.
    Que homem só foi o meu pai. Que homem só eu me tornei. Minha perna esquerda, que hoje é o meu tronco, o meu mourão, ainda me suporta. Na beira do mar, é ela que me ancora. Fateixa de pau-e-pedra, guardando as minhas partidas. Ainda assim, quando olho o mar, procurando não ver ninguém, eu os encontro no sargaço, na maresia, nas vagas. É na ausência que estão meu pai e todos os meus fantasmas. É no obscuro das saudades que arrebenta o furacão de quem não partiu.
    Digo isso da perna esquerda porque, há dias, as dores da direta me dilaceram. Há uns quinze anos, tive nesta um derrame que me custou a sustentação e causou o subsequente definhamento muscular. Além disso, quando tinha uns sete de idade, meu pé direito foi moído pelos aros de uma roda de bicicleta e nunca teve os ossos soldados corretamente, o que me fez conviver com a dor de ficar em pé desde então. Bem recentemente, talvez resultado da má prática de esportes, a articulação do meu ombro direito vive em eterno estado de inflamação, o que me limita os movimentos consideravelmente. Além do mais, tive as duas fraturas na mão direita: uma, resultado de um jogo de vôlei de rua; outra, de uma surra que dei num dos dois únicos ladrões que me roubaram. Isso, sem levar em conta os inúmeros acidentes com facas, anzóis, ferramentas e outras pequenas mutilações ao longo dos anos. Tudo, do lado direito. Agora, espasmos elétricos de punção e fogo na perna direita me agoniam e me fazem pensar se não é nesse lado, à guisa de tiracolo, que carrego meus furacões. Ou se é por aí que eles me carregam. Será que é o mar, o mar alto, a rota aonde eles me fustigam? Será que a minha firmeza, que me finca e sustenta, não me estaria negando o desdobramento de um confronto real com a procela? O que eu seria depois de todos os embates e massacres que nunca me foram impostos lá, após a arrebentação, passando a costa, no além da ausência dos espíritos?
    O que meu pai talvez sentira e nunca me dissera é que aquilo que resta ao homem que evita o mar é a erosão. É ir se desmanchando em areia e fazer parte do chão da praia, parte do mar, parte da terra. Talvez, por outro lado, existam muitos mares menores onde navegam os homens que são o que são, e nada mais: funcionários, pais, bêbados, vagabundos — homens de poucas metáforas. Ou ainda, que o mar grande seja uma maneira de existir ausente, um lar reservado apenas para o depois.
    Eu amei o mar por meio do meu pai. Pela sua mão, perdi e ganhei o medo dos afogamentos; pelo seu olhar, aprendi o respeito e a medida segura de atrevimento. Porém, hoje, aqui, seguro, sou fustigado pelos furacões que deveria haver apenas lá. Gostaria de lhe dizer que, como na maioria das coisas de que me lembro dele e das quais aprendi com ele, existem no homem e na vida dois lados, duas forças que se encontram sem muito conflito, mas cujos violência e desastre se acentuam conforme nelas se adentra. Sobretudo, quando essas forças são menosprezadas no cotidiano, na paciência com que a onda converte o recife em areia fina, na agressividade imóvel de quem olha o mar dolorosamente.
    Sem esse modo de amar, contudo, o outro que eu seria — talvez sem dores, talvez sem senso — não saberia o que é esse cruzamento da fronteira divisória do homem: tudo que sei de mim foi costurado e ponteado pela dor de permanecer e pela angústia de não partir. É possível que essa seja a condição real do homem e que não existam marinheiros, exceto em fantasias e delírios de poder. É possível, portanto, que a natureza da vida sejam este fremir de nervos e tendões, estes ossos tortos e toda a sorte de concretudes físicas que me ancoram na rocha do cais.
    Entretanto, é também possível que este modo de amar o mar seja a única coisa que possibilite a existência do mar. O largo imenso donde olho o mais imenso; e, nesse mais imenso, o verdadeiro outro lado. Não os sei, mas suponho os ventos que sopraram meu pai. Todavia, é da natureza dos homens sós, isso eu sei por certo, costurarem eles mesmos os farrapos de suas velas ao mesmo tempo em que trançam os cabos de suas fateixas. Resistir também é um modo de navegar.

06/03/25

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

POLÍTICA INTERNA

Fonte da imagem: @iwanttoleaveok (Instagram)
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


é difícil criar um país sobre outro
sempre resta alguma edificação
uma estrutura de linguagem
um nadinha de cultura

o povo teima
a terra teima, até a fauna teima

deixar continuar a ver se melhora
é a covardia que renite
como única forma possível de apaziguamento

ou isso
ou virar cometa
bomba H onipresente
peste e obliteração

pensar que ser país é democracia, diplomacia
e outras louçanias
não cola mais na catastrófica vida em comum
lugar de despotismos e ditaduras imperiais

mas aqui se teima
e aguardar no sofrimento o cansaço da guerra
tornou-se o que se tem para hoje
e amanhã
e depois

a ver se há um modo mais digno
de não perder fronteiras
de não queimar constituições
de manter os invasores visitantes
a quem, um dia, há de se dizer adeus

24/02/25
 
P.S.: Poucas coisas são mais empobrecedoras em literatura do que explicar as alegorias de um texto, mas, dadas as circunstâncias sociopolíticas atuais, achei necessário explicitar aqui que a “política interna” de que trata este poema é uma metáfora para as angústias pessoais de um indivíduo a cujas sanidades mental e emocional a vida em sociedade e as crueldades e atrocidades do cotidiano têm se tornado fatores nocivos, ou seja, não há nele nenhuma expressão de defesa de ditaduras, nem de xenofobias, nem de nenhuma conduta reacionária, menos ainda de apologia ou de incentivo a elas. Trata-se de um poema íntimo, que aborda as dificuldades que uma pessoa tem de lidar consigo mesma e com as circunstâncias em que se insere. A codificação extrema nada mais é do que marca de estilo e assim deve ser considerada.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

AGORA, A NOITE

Criança amazonense no embalo da rede. - Divulgação/Caminhos da Reportagem (Modificada.)
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

Bebo o café que é possível
com o pó da manhã e a água das horas.
Lá fora, tudo cidadeia,
e o espaço me comprime em minha casa verde,
velha e resistente.
Os urubus que me vigiam
pragalham da carne imputrefata
sitiando todas as vias de felicidade possível.

Não há madeira em minha porta,
ou horizonte, na janela.
Minha cortina de trepadeiras ainda tenta;
minhas espadas de Ogum ainda tentam;
e as de Iansã, também;
mas, aqui, neste quintal de trasantontem,
adormeceram já todas as guerras

— a paz que resta é mofo e cupins
e mijo de gatos nas calhas.

Amanhã, quando o sol me encontrar,
será de nós ambos o ocaso:
tempo em que nos deixaremos finalmente anoitecer
da noite que veio me buscar quando menino,

quando o paquete de minha rede me embalava sem fateixa
pelo Estige e pelo Pacoti,
pelo espaço e pelos abismos,
sem sonhar que as tempestades dormiam comigo
fetalmente, no porão sem escotilha.

Na casa velha, as tralhas acordarão limpas,
embaladas no porão da jangada que ela se tornou.
Um mar vesperal crepuscula prestes,
e um terral desancora a terra
de que já não sou mais feito.

Agora, a Noite.

30/01/25