
Este blogue se destina ao uso artístico da linguagem e a quaisquer comentários e reflexões sobre esta que é a maior necessidade humana: a comunicação. Sejam todos bem-vindos, participantes ou apenas curiosos (a curiosidade e a necessidade são os principais geradores da evolução). A casa está aberta.
terça-feira, 28 de dezembro de 2010
AMANHÃ
abraçar
até não sobrar nada
mas abraço não se dá nem se recebe
abraço é um fenômeno
ele acontece.
28/12/10
GÊNESE
Antes, não havia quase nada:
um escuro úmido por toda parte
e uma existência resumida ao elementar.
A primeira manhã é um rapto, um tapa e um grito.
Depois, a carne macia, o calor e o leite.
A seguir, o subsequente mundo e as repetições violentas e espasmódicas,
até que, de novo, raptem-nos, estapeiem-nos, e gritemos.
Amar parece ser um nascimento contrário e geminal.
De novo, a existência resumida ao elementar,
que faz, porém, o monstruoso lado de fora parecer minúsculo então
e tudo o que não é úmido como a lágrima em um olho fechado,
errado.
O um, dois.
E a segurança de um ventre compartido.
28/12/10
DE RETALHOS
É o assoviar esquecido que sobra quando tudo mais se vai.
28/12/10
Pra você, Bequinha.
Comentado em: De retalhos
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
LAGOA
O céu se desenha e se desdesenha e se redesenha em nuvens leves e escuras
— mantos de deuses meninos
embalados pelos galos apressados e pelos cães sempre expeditos.
Um trovão eterno, sem descanso.
Um tom mais forte e depois outro ainda mais
cobrindo a lagoa que, plácida,
dormita como uma tia
que recebeu bem as visitas queridas em sua vastidão de casa.
Até as estrelas dormem,
até a lua dorme.
Não fosse o mar
a arengar com os cães e com os galos
com seus resmungos de assuntagem,
o mundo inteiro pareceria dormir essa noite.
02/01/10 5h22min
Esta é uma repostagem deste poema feito há pouco menos de um ano. Ele é fruto de uma noite chuvosa, mas não daquelas chuvas drásticas, punitivas: uma chuva de harmonia, de limpeza, de reencontro. Reencontro é a palavra.
Estes últimos dois dias foram de reencontro com quem e o que eu amo. Por hora, ainda é muito nítido, muito claro (acho que o poema filho destas horas recentes precisa de olhos apertados, porque, agora, ele seria meio assim: "um dia de chuva | um dia de sol | e o que sinto não sei dizer"). Assim, quero (re)registrar um momento comum aos dois períodos, que foram tão diferentes, mas igualmente renovadores.
E quero dizer àqueles e àquela que fizeram destes dois últimos dias algo tão bom que os amo muito mais que saberia dizer.
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
Magic Carpet
O FÔLEGO BREVE
Mas preciso trancar o vento do lado de fora da casa,
Pois aqui ele tem vítimas frágeis demais.
Meus papéis, meus excertos, minhas imagens…
Não lhes tenho biombos, não sei fazer campânulas.
Vento é feito Deus.
Respiro-o, visto-o, alimento-me d’Ele
Com meu diafragma.
E, em troca, Deus me morde por dentro, na carne de meus pulmões.
Impiedosamente.
Amanhece, e esses dias têm sido tão quentes…
São dias com manhãs de calor sem vento,
Sem pressa e também sem piedade.
Quem se apieda de mim, meu Deus, meu vento, meu calor?
Já me levas pulmões, fôlego, mesmo a música triste com que me envio.
Leva-me também, Deus, alguma consciência,
Para que eu sonhe um pouco mais…
Sabes quão pequenos eles são, tão humildes, tão meninos…
Dá a eles um pouco mais de tempo
Para que cresçam a homens.
Quanto daquela aurora ainda resta
Nas praias da minha infância?
O anzol, o peixe, a onda e a duna
— o que resta deles na minha pele, na minha carne? —,
Esqueci-os?
Mas, esquecer, como?
As chuvas, elas ainda desabam e serenam
No meu telhadinho velho de telhas de barro
Mal-acabadas,
Ainda corro pela casa com panelas para as goteiras!
Esquecer, como, se aquela areia de rio ainda não saiu de meus pés?
Estranho como, nos sonhos, sempre tudo é velho…
Ouço o rádio de pilhas branco,
Ainda há uma laranjeira e um abacateiro no meu quintal…
A casa ainda me aconchega.
Talvez Tu, em Tua sabedoria,
Deixe-los assim: infantes, desprotegidos,
Animaizinhos sem saberem bem o que fazer dos cascos.
Um fôlego breve e puro, um lampejo de inteireza
Em dias tão despedaçados, um Tu que estás
Quando Te tranco do lado de fora de minha casa.
Talvez, meu Deus, sejam as marcas dos Teus dentes
No meus pulmões quando eu Te respiro.
Talvez sejam essas marcas as raízes das minhas árvores,
Talvez seja através das pequenas feridas que me sopres,
Que me ventes, que me vistas, que eu me musique.
Talvez, Deus, Tu sejas menino.
A criança que me olha impertinente
Na folha de papel desenhada de tantos anos atrás,
Quando eu aprendi a adorar os trovões
E a rabiscá-los entre os corredores estreitos dos cadernos de poesia.
Talvez as vítimas nem sejam frágeis, nem sejam vítimas…
Talvez as portas possam dormir abertas essa noite.
08/12/10
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
Samarica Parteira
domingo, 21 de novembro de 2010
A SOMBRA ONIPRESENTE

Mesmo daqueles de sombra, confrades dessa vida.
Mas, talvez não.
Talvez fosse por essa noite sem lua e sem estrelas,
Que, onda silenciosa, tudo une e tudo iguala.
Nela, tudo são sombras.
E, por termos sido todos os mesmos,
Não nos reconhecêramos.
Mas, quem me fiaria que, no meio daquela noite inteira,
Houvesse mais que uma sombra…
Quem me garantiria na ausência do sol
Um elucidar-me nas ruas, nos muros, na areia aprisionada do cimento,
Desenhado ali
Como um timbre do espaço que ocupava?
Como um ponteiro afirmando uma hora negra no chão?
À noite, a hora termina os homens.
Observei-a ser uma, então modificar-se
E ser vária, ser muitas, até ser tudo.
Observei-a, sabendo-me fadado
A ser só e eternamente um,
Como uma âncora sem cabos
Vestindo-se de um dilúvio lento e negro.
Vórtice de uma superposição de águas.
Até que, por um momento que ainda não terminou,
Senti-me como a âncora que se libertara do barco
Para, apêndice arrancado, perder sua gênese
E dar-se ao leito de todos os mantos no fundo do mar.
21/11/10
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
RACISMO: FLAGELO BRASILEIRO
Ultimamente, temos visto o racismo e o preconceito sociorregional e cultural tomarem lugar aqui, na internet, e notícias a esse respeito circularem nos meios de comunicação (muito poucas). É notório que algumas empresas de televisão se omitem quanto a algumas notícias (vide ENEM) quando isso lhes interessa, mas eu assumo que reconheci em mim ainda um resto de inocência por achar que a falta de veiculação devida do caso "Mayara Petruso" acontecera em virtude da natural sobreimportância de outros assuntos (depois, eu, burro, perguntei-me "quais?").
Hoje, por exposição de um amigo, entrei em contato com a notícia e com o vídeo a ela incorporado que seguem abaixo:
Conversa Afiada de 16 de novembro de 2010
(ou copiem e colem: http://www.conversaafiada.com.br/video/2010/11/16/video-assustador-globo-de-sc-tem-odio-de-pobre/)
Não venho aqui com o intuito de piorar ainda mais a imbecilidade de generalizações regionais ou municipais. Tampouco venho defender ou atacar o jornalista responsável pelo sítio (Paulo Henrique Amorim), ou, muito menos, a empresa de que ele faz parte (Rede Record). Há outros momentos para a defesa dessas teses. Por agora, o que, para mim, pareceu muito pior, e, por isso, quebrei meu costume de não me envolver, é o teor racista e, por que não dizer, neonazista (SIM, É ESSA A PALAVRA) com que um suposto profissional do telejornalismo (alguém cuja profissão é, acima de qualquer outra coisa, um exercício da defesa do interesse das pessoas menos favorecidas, mais frágeis, mais humildes, mais indefesas) se manifestou numa emissora afiliada à Rede Globo de Santa Catarina.
O motivo pelo qual acho muito mais perigoso o MENSAGEIRO que a própria MENSAGEM é o fato de, meus amigos, não ter sido esta veiculada por um animal de cabeça raspada tatuado com suásticas, e sim por UM PROFISSIONAL DE UMA EMISSORA DE TELEVISÃO ABERTA.
Quando uma sociedade chega ao ponto a que nós chegamos, quando as pessoas já não se sentem mais inibidas ou coibidas a esconder suas bestialidades e defendê-las abertamente em palanque sob a salvaguarda da bandeira do JORNALISMO (perdoem-me os jornalistas sérios), supostamente, fiando-se na racionalidade, ou pior, no senso comum de sua região, então, meus amigos, é hora de temermos.
E de reagirmos.
Não nós, nordestinos (terminologia que defendemos sem saber que nasceu já inventada preconceituosamente), ou os outros habitantes das regiões do Brasil sob a bandeira de suas culturas.
Eu me refiro a nós, pessoas.
Acordemos!
Esses retrocessos não o são de fato. Os pensamentos de superioridades social, racial, cultural, comportamental, artística etc. estão imiscuídos entre nós há tempos. O que vem acontecendo é a erupção de uma lava que nunca esteve adormecida, apenas contida. Entre nós mesmos, independentemente dos fatores citados acima, há esse tipo de comportamento. Percebemos isso diariamente e, por omissão, passamos adiante aos nossos filhos, amigos, alunos, colegas.
Não resolveremos isso com boicotes. Nem com a imbecil represália de Talião.
O caminho é a reconquista de nossa humanidade, que ficou perdida em nossa história desastrada por meio de nossa cegueira consumista, nossa irresponsabilidade eleitoral, nosso hedonismo, nosso egoísmo, nossa corrupção.
A meu ver, a coisa mais difícil que existe é mudar alguém por meio de qualquer coisa que não seja o exemplo. Sei disso porque esse é o meu ofício.
Se quisermos mudar, mudemos a nós.
Vamos recuperar o legado daqueles que morreram martirizados por direitos de que, hoje, desdenhamos (outro dia, vi alguém veladamente defender a ditadura sob o argumento de que seu pai dormia com a janela aberta àquela época).
É com mais tristeza que esperança que eu passo adiante essa notícia, esse vídeo e este comentário.
Porém, podem ter certeza, é com toda a teimosia deste mundo.
Um abraço a todos,
Fernando de Souza
terça-feira, 16 de novembro de 2010
OFÍCIO
(Para Carmélia Aragão e Rebeca Xavier, que também carregam esse fardo terrível da percepção)
Ela nunca disse isso, mas eu senti,
pela primeira vez, com ela, observando:
ser escritor não é uma roupa de domingo;
é uma farda.
16/11/10
domingo, 14 de novembro de 2010
INTRUSÃO

Ela procura como se houvesse perdido a si no meio de minhas coisas. Vasculha-me as gavetas. Folheia cadernos. Desencadarça meu par de botas. Seus pés não sabem o que significa proteger-se. Calça-as. Imagino-a sentindo-se pequenina, mas, num segundo olhar, já me parece perceber uma desaprovação consternada por ser o mundo um lugar tão grande. Mas, é só por um momento. Adivinho-lhe um rubor no rosto. No entanto, subitamente, não há luz para que a veja. Também subitamente, como se meus olhos houvessem piscado por dentro, vejo-a olhando-me. Não. É através de mim? Recolho-me sem graça, finjo olhos irritados e os esfrego com uma insistência convincente. É o suficiente.
Flutuando, continua a inspeção. Armário, guarda-roupas. Bolsos das camisas. São poucos. Vai ver no armário do banheiro minhas lâminas e, no espelho da portinhola meio aberta, enxerga-se. Tenta reconhecer-se, mas seu rosto não tem linhas. Um traço sequer. Seu rosto é puro e redondo, e seus olhos não refletem a luz. Em todos esses anos, nunca se percebera. Talvez se cresse irreal demais, talvez achasse vir daí o seu trânsito livre, sua intrusão.
Vou até ela. Mais alto, ponho minhas mãos sobre seus ombros e aninho-a, acalento-a. Adivinho-lhe uma tristeza. Há dores piores. Mas, como dizer isso a quem não se reconhece na ausência das próprias lágrimas?
Como dizer que, para ela, não há tempo? Que nunca houve? Que não há novidade em sua estada, que não há surpresas a celebrar? Como esperar que minha presença, que sempre estivera ali, percebendo-a, que nunca a vira mudar, que nunca a vira um dia mais velha, mas que soube todo esse tempo reservar-lhe o olhar, desviar-lhe o trajeto, arrumar-lhe cadeiras, servir-lhe merendas e abrir-lhe janelas, como esperar que essa presença lhe mostre naquele espelho de pedra o imutável?
Como dizer a ela que sou eu que a reflito?
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
NOTURNO EM MI BEMOL MAIOR

E as cervejas afogadas dormem
No colo de seus homens.
Um noturno de Chopin diz resignado baixinho
Em pé na plataforma da mesa
Que descansa cabeças, corpos, almas:
“Teus ouvidos são do mundo,
E o mundo te ama,
Mas eu, não!
Eu te suporto e te adormeço
E me esqueço sem que te lembres
De me resgatar os pedaços estuporados
Dentro de teus bolsos,
Sob teus sapatos,
Dentro de teu colchão.
Eu sou teu esquecimento que te diverte,
Tua bailarina puta de porcelana,
Teu vento fresco revigorante.
Eu sou tua volta a casa.
Eu sou teu noturno brumoso
Como a espuma tíbia e desleixada
Nas paredes de teu copo vazio.”
O barulho corrediço e metálico estala percussivo,
Vestindo suas notas de um dourado-verde porta-estandártico,
Enredando-lhe um samba.
Também baixinho, tropeça o noturno alguns passos
Em direção à noite também afogada,
Que o espera de boca entreaberta, meio boba,
Com um sorriso sem inteligência,
Consciente de que já a possuíra.
O bar fecha as portas,
Mas esta, a noite, apenas sorri uma palidez negra
Que antecede malditamente o compasso marcial
Das ruas claras,
Das casas claras,
Das pessoas claras.
Claras dessa mesma claridade medonha que inflama os órgãos,
Tirando do fundo noturno do mar
O esquecimento à luz maquinal,
Que parece ser mais eterna que a noite,
E destituída totalmente da sua complacência.
Dentro dos homens, alguma coisa os esquece
De onde vêm as almas,
Pois é das mães o parto, e das esposas, o rito;
À noite pertencem os homens.
03/11/10
sábado, 30 de outubro de 2010
Amor de Conuco
Dime si me va a querer
Soy hombre de poco hablar, Consuelo
No tengo na' que ofrecer
Un conuco, un gallo y un lucero
Y la luz de la mañana
Que entra por mi ventana, cielo
Y los rios y la montaña
Y el viento que peina tu pelo
Yo quisiera ofrecerte el mundo y no puedo
Na' me tienes que ofrecer
Tu mirada es lo único que quiero
Dormiremos cuando el dia
Se acueste encima del potrero
Y los grillos harán su canto
Y entre hierba y pasto soñaremos
Y de tanto amor tu cuerpo
Hará de mi vientre lo que espero
Un retrato de tu cariño, te quiero
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
DELICADA

nem exatamente na cor dos seus olhos, ou no tamanho do seu cabelo.
Não sei direito, são indefinidos pontos no meio da névoa da minha lembrança.
Mas eu me lembro das suas mãos.
Lembro o cheiro de amêndoas que recendia da sua pele.
Lembro o cheiro e o sabor do seu hálito e como eram delicadas as suas mãos.
Lembro o quanto elas trabalhavam e como, ainda assim, eram delicadas.
As mãos que, nas minhas, disseram: "preciso ir";
e, delicadas como asas de borboletas, partiram.
Se não lhe desenho os traços exatos na necessidade de sua construção,
Se não lhe resguardei a exata figura,
ainda assim a tenho inteira, indissipável:
a sua delicadeza é o que me corre nas veias.
05/02/05
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
DE LO QUE TIENE UNO

Beijar a alma dos castelos, roubar uma espada de Toledo
Imiscuir-me en la sangre de la gente, de las calles y de la lengua
Trilhar quixotesco até o mar de Cádiz
E, fazendo-me de lança e moinho, honrar dulcineas
Mas a Espanha não me quis
Eu tinha também vontade
De fazer-me ao mar marinheiro
E apresentar-me homem diante dos ventos
E meu corpo, aos seus corpos, e meu espírito, aos seus
E, se face ao leito, tocá-lo encantado
E virar tritão, titã, leviatã
Mas o mar também não me quis
Exceto pela onda em meus pés como que me dizendo
“De mim, só tens o sal”
E o vento só me veste e me vibra um frio de ostra morta
Também tinha vontade de prender-me à terra
E criar raízes como a mangueira
E, telúrico, tirar da matéria a matéria para também ser terra, rocha, húmus e cachoeira
Numa casa pequena e amarela de porta e janela
E num quintal sem fronteira, de onde partisse o mundo
Mas a terra me tem outros planos
Quis muito; tive outros muitos
Tive desertos entre as gentes e mares ilhando-as
Malgrado seus olhos, que nunca me deixaram de atingir
Tive uma pátria vastíssima, mas idioletal
Onde era povo e rei, nuca e guilhotina
Tive jardins, tive céus abertos, tive chuvas, ventos, ondas, relâmpagos, trovões
Tive o chão e tive o peixe, tive a terra firme e cheia de saudade
Tive o cansaço da vida e o medo da morte
E tive a mim, tendo eu a possibilidade de não ter tido
Mas não tive a Espanha, não tive o mar e não tive a terra
Esses restam longe, muito além das sombras de minhas mãos
Num intermédio vago entre mim e aquilo que temo
21/10/10
terça-feira, 12 de outubro de 2010
SONETO DA CARNE REVELADA

Da fenda selvagem a seiva agridoce
Tingiu-me a língua da fêmea que pôs-se
Recôndita e vasta, puta e donzela.
Fizeram-se meus o que era seu corpo
— a nádega branca, o seio convulso —
E, à minha mão de homem, o seu pulso,
Que livrara-lhe exangue o próprio corpo.
Gravara-me às costas a fêmea que era
E seu verdadeiro nome ao meu peito.
Em troca, escrevi-lhe à carne inteira
O homem que seu sexo havia feito,
O macho cuja carne ela comera,
O verão de que fora primavera.
13/10/10
RASCUNHO
em rascunho.
É bom rasgar uma folha de papel.
Vê-se um estágio passado, pretérito, morto
por um melhor.
Livra-se.
As linhas, como degraus descendentes,
jazendo rotas e despedaçadas
— e daí? o verso já descera
dos telhados olímpicos.
Todavia, está lá a matéria morta:
um cão atropelado, uma árvore queimada.
O novo cão latirá o seu mesmo latido?
O cinamomo vicejado recenderá novamente aquele cheiro?
13/10/10
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
INÍCIO
LAGOA

O céu se desenha e se desdesenha e se redesenha em nuvens leves e escuras
— mantos de deuses meninos
embalados pelos galos apressados e pelos cães sempre expeditos.
Um trovão eterno, sem descanso.
Um tom mais forte e depois outro ainda mais
cobrindo a lagoa que, plácida,
dormita como uma tia
que recebeu bem as visitas queridas em sua vastidão de casa.
Até as estrelas dormem,
até a lua dorme.
Não fosse o mar
a arengar com os cães e com os galos
com seus resmungos de assuntagem,
o mundo inteiro pareceria dormir essa noite.
02/01/10
GRITAR
O passarinho e a morte
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)
“Lutar com as palavras é a luta mais vã.
(…) São muitas; eu, pouco.”
Gritar. Gritar como a pedra.
Como a terra, com a semente.
Gritar além
do que já sonhara
Deus os homens.
Gritar todas as palavras
esquálidas e moribundas,
as que não mais se imaginam
além do sussurro fúnebre dos dicionários.
Gritar os pobres da terra,
cujos nomes, ainda mais pobres, morrem desinventados
nas bocas escorbúticas como um lamento miserável,
desculpando-se por existir.
Gritar a criança muda de alma muda,
apavorada de estupros,
retinta de hematomas,
desabitada em si como uma casa de portas e janelas arrombadas
por onde tudo passa como um vento quente de mormaço.
Gritar a pedra da alma do homem,
que o homem tem gretas assombradas
por magmas infernais.
Gritar a terra, que ela é grito
na carne das árvores,
no fluxo das ondas,
na revolta do mar.
Gritar como se não houvesse
quem mais gritasse.
12/09/10
MINA DOUTRAS PRECIOSIDADES
domingo, 3 de outubro de 2010
Mary & Max

Mary and Max é a história de uma garota australiana que, devido a um acaso, resolve corresponder-se com um homem nova-iorquino que tem síndrome de Asperger. Sobre o roteiro, não vou mais além. Não porque não queira descrevê-lo, mas porque esse filme merece algo que eu não posso dar com minhas palavras.
Sou fã de animações que vão além dos estereótipos próprios do gênero, o que exclui obviamente os ultrajes mickeymouseanos e os seus macaqueamentos (estes, seguramente, têm o seu lugar no mundo do entretenimento, mas não no da arte), resguardando minhas desculpas às brilhantes exceções como Fantasia. Tenho visto coisas ótimas nesses últimos anos, algumas realmente tocantes e delicadas como Wall.E e Up, dos estúdios Pixar. Gosto também de algumas outras incursões como As Bicicletas de Belleville ou A Viagem de Chihiro, filme que já comentei aqui.
No entanto, o objetivo deste texto é dizer o seguinte: não me lembro de ter visto um filme como Mary and Max. Não vou usar o rótulo animação, e sim FILME. Não por demérito do primeiro em relação ao segundo, de qualquer natureza, mas pelo fato de ter esse filme fugido tanto das características do seu gênero às quais estamos acostumados que não posso classificá-lo junto aos seus irmãos.
Mary and Max é algo como eu nunca vi antes. Eu o divulgo aqui não como uma dica, mas como a finalidade de um pedido: por favor, assistam a ele. Seremos todos melhores depois disso.
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
DENTE DE LEITE
(Poeminha inspirado por http://bekxavier.blogspot.com/2010/09/liberdade-clandestina.html)
A memória é um dente de leite sobre o telhado,
lá jogado
pelo cadáver de quem somos.
Recordar é puxar novamente a cordinha,
é maltratar a gengiva,
é abrir e fechar a porta da geladeira,
é morder com força os nós dos dedos.
Recordar
é gemer por dentro e sangrar de mentirinha
sobre a toalha de mesa feiinha,
feiíssima,
sujando a camisa mal abotoada
em cujos bolsos jazem crus papéis desencontrados
(cédulas, notas fiscais, anotações do momento presente
que, como uma máquina de engrenagens,
engrimpa entravado por eles).
A memória é um latido
(porque todos os latidos do passado são iguais)
de um cão que afagamos
sobre os pelos de nossos antebraços.
A memória é a esquecida luz acesa
que nos viajou
e não nos trouxe de volta nunca mais.
A memória é o extravio da alma
quando não estávamos suficientemente atentos para viver,
pois que viver é existir, e existir é estar consciente,
e estar consciente é não lembrar.
27/09/10
domingo, 12 de setembro de 2010
April come she will

April, come she will
When streams are ripe and swelled with rain;
May, she will stay,
Resting in my arms again
June, she´ll change her tune,
In restless walks she´ll prowl the night;
July, she will fly
And give no warning to her flight.
August, die she must,
The autumn winds blow chilly and cold;
September, I´ll remember.
A love once new has now grown old.
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
ALVORADA

desses de guerra em paz,
trinaria a Alvorada,
e aceitaria sem saber por quê
o princípio do meu dia;
fosse pescador,
sussurraria o mar
batendo-me no casco da alma
o meu nome na boca do peixe;
fosse ladrão,
o embrulho nas tripas
e a revolta nas mãos
gritariam todos os nomes
— exceto o meu —
e me despertariam;
fosse matemático
ou tísico,
uma catraca na mente
ou no pulmão
rangeria um sol quadrado e verde
que, agudo, moto-continuamente,
diria “Continua…”;
fosse médico,
um sangue alheio
encharcaria os músculos parassimpáticos de meu corpo
e vibraria nos meus tímpanos: “Urgente!”;
fosse a feia enamorada,
uma lua cheia dentro dos olhos
doeria branca em meu fígado,
em meus ossos,
e sua lágrima esperançosa-arrependida,
rasgando minha pele,
doer-me-ia um crepúsculo dentro de minha manhã;
mas eu não sou soldado
e não pesco mais que me traz a onda.
Roubo apenas o que me é dado
e calculo muito mal, apesar de ser meio tísico.
Gostaria de sanar, de curar,
mas nem mesmo me sei inteiros os males,
e tenho eu próprio já minha cota de luar.
Sou poeta, não outro;
e não é outro, senão o coração,
o que me desperta.
08/09/10
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
EUFONIA
terça-feira, 10 de agosto de 2010
A Viagem de Chihiro

A fábula dirigida por Hayao Miyazaki tem o poder de despertar a imaginação e trazer à tona o olhar infantil que, um dia, tivemos sobre a vida e nossa própria evolução, mostrando a mágica que pode ser a transição da infância para a adolescência.
A música que encerra o filme — Itsumo Nando Demo (Sempre Comigo) — é cantada e tocada por Youmi Kimura. Abaixo, estão a letra original e a tradução.
Assistam ao filme, e deixem-se levar pela sua delicadeza.
ITSUMO NANDO DEMO
(Letra de Wakako Kaku e interpretação de Youmi Kimura)
Yondeiru mune no dokoka oku de
Itsumo kokoro odoru yume o mitai.
Kanashimi wa kazoe kirenai keredo
Sono mukou de kitto anata ni aeru.
Kurikaesu ayamachi no sonotabi hito wa
Tada aoi sora no aosa o shiru.
Hateshinaku michi wa tsuzuite mieru keredo
Kono ryoute wa hikari o idakeru.
Sayonara no toki mo shizukana mune
Zero ni naru karada ga mimi o sumaseru.
Ikiteiru fushigi shindeyuku fushigi
Hana mo kaze mo machi mo minna onaji.
La la la la la la...
Yondeiru mune no dokoka oku de
Itsumo nandodemo yume o egakou.
Kanashimi no kazu o itsukusuyori
Onaji kuchibiru de sotto utaou.
Tojiteyuku omoi de mo sono naka ni
Itsumo wasuretakunai sasayaki o kiku.
Konagona ni kudakareta ka ga mi no ue ni mo
Atarashii keshiki ga utsusareru.
Hajimari no asa no shizukana mado
Zero ni naru karada mitasareteyuke.
Umi no kanatani wa mou sagasanai
Kagayakumono wa itsumo koko ni,
Watashi no naka ni mitsukerareta kara.
La la la la la la...

Em algum lugar, uma voz chama do fundo do meu coração
Que eu possa sempre sonhar os sonhos que tocam meu coração
Tantas lágrimas de tristeza, incontáveis lágrimas rolaram
Mas sei que, do outro lado, encontrarei você
Toda vez que caímos no chão, olhamos para o céu lá no alto
E acordamos para a sua imensidão azul, como se fosse a primeira vez
Como o caminho é longo e solitário e não enxergamos o fim
Posso abraçar a luz com meus dois braços
Quando digo adeus, meu coração para, com ternura eu sinto
Que meu corpo silencioso passa a ouvir o que é real
O milagre da vida, o milagre da morte
O vento, a cidade, as flores, todos nós dançamos em união
La la la la la la...
Em algum lugar, uma voz chama, do fundo do meu coração
Continue sonhando seus sonhos, nunca os deixe morrer
Por que falar de sua melancolia ou dos tristes pesares da vida?
Deixe seus lábios cantarem uma linda canção para você
Não esqueceremos a voz sussurrante
Em cada lembrança ela ficará para sempre, para guiar você
Quando um espelho se quebra, estilhaços se espalham pelo chão
Lampejos de uma vida nova refletem-se por toda parte
Janela de um recomeço, silêncio, nova luz da aurora
Deixe que meu corpo vazio e silente seja preenchido e nasça outra vez,
Não é preciso procurar lá fora nem velejar através do mar
Porque brilha aqui dentro de mim, está bem aqui dentro de mim
Encontrei uma luz que está sempre comigo
La la la la la la...
