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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A TRISTE PAISAGEM DA JANELA QUE SE DESPEDE DE LÔ

Lô Borges (detalhe ampliado da contracapa de Clube da Esquina - foto de Cafi)
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    Já desisti de tentar diminuir o abismo geracional entre mim e quem tem menos de 25 anos, quase a metade da minha idade. Pensando bem, a que sorte (ou azar) de coisas o mundo foi sujeito no último quarto de século? Toda a cultura pop e boa parte da economia e da política (até da religião) passou por conversões, adaptações ou apagamentos que as tornaram inindentificáveis pra quem já tinha 25 anos quando o milênio virou. Isso, sem falar na revolução tecnológica. Vi a morte do K-7, do LP, do VHS, o nascimento da internet, do CD, da MP3, do DVD e do Blu-Ray, suas respectivas mortes, sua tímida ressurreição e, agora, a ascensão do streaming, certezas e dúvidas que nasceram, morreram e reencarnaram.

Fita Cassete K7 Basf 90 Lh Extra I Estereo Cassete Lh-ei Ec
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    Quando nasci, os artistas que me formariam já eram grandes ou estavam confirmando seu estrelato, e eu que lutasse (expressão millennial) pra correr atrás (expressão pré-hippie) da minha sintonia cultural. Minha própria cultura, a nordestina, ainda tinha uma passada orgânica de bastão (mix de expressão pré-boomer com da “geração Z”), dado o meu contexto socioeconômico. Ouvir Seu Luiz, Pessoal do Ceará, Fagner e o cânone do forró, do brega e da seresta era natural, tocavam no Roadstar da Belina do meu pai. A MPB também tinha espaço no radinho da cozinha, além das baladas românticas e, é claro, do rock nacional e dos gêneros gringos. Ainda não havia o agropop, o piseiro, o narcofunk nem os neopentecostais, então as FM eram mais ou menos democráticas, rolava de tudo, bastava mudar a estação.
    Passava horas da minha adolescência esperando o programa do Paulinho Leme ou o do Nelson Augusto, com a Basf 90 semivirgem a postos pra capturar, com sorte, a fina flor musical do meu tempo, coisa incompreensível pra esta geração atual, que nem sei mais como foi rotulada pelos vendedores de vape e Smirnoff Ice. Hoje, o mercado conseguiu virtualizar quase que completamente as mídias, tornando o acesso ao audiovisual portátil possível praticamente apenas mediante assinaturas de streaming. Sem o Spotify, fica muito difícil pra um adolescente de hoje saber quem foi Lô Borges, que, como se deveria saber amplamente, fez, em parceria com Milton Nascimento, um dos melhores discos de todos os tempos, o álbum duplo (duro, explicar um elepê duplo a um garoto de 13 anos de hoje) Clube da Esquina.

Lô Borges
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    Foi mais ou menos por aí (meus 13 anos) que tive contato com o Clube, muito pobremente, pois não era um disco tão “comercial” assim. Lô Borges, mesmo, só fui conhecer uns dez anos mais tarde, quando, já com a internet, pude ouvir as suas coisas no YouTube. E, meu Deus!, que música era aquela! Uma genialidade adolescente, extremamente precoce e rebelde, desenquadrada dos padrões comerciais da indústria, original, mas reverente ao pop inglês, brasileira, mineira, íntima.

O "Disco do Tênis" - Lô Borges, 1972 (foto de Cafi)
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    Nessa última semana passada, vinha acompanhando pelo Facebook e pelo Instagram as notícias de sua internação. Seus 73 anos (nem parecia!) não suportaram uma intoxicação de medicamentos, o que o levou ao coma, a uma traqueostomia e ao subsequente falecimento hoje, segunda, dia 03, logo após o Dia de Finados. A notícia veio perdendo o peso nesses dias. Sua idade — a idade daqueles de sua geração, o sedimento e o pináculo culturais musicais do Brasil — não nos deixaria com muita esperança de uma recuperação milagrosa em casos mais sinistros.
    Seu parceiro, Milton, está com 83 anos, já fez sua anunciada última turnê, gravou com amigos e medalhões, honrou sua velhice de preto-velho que se tornará orixá. Recentemente, também, divulgou-se seu quadro de demência. Um deus que vai se esquecer de quem é. Por mais amor e esperança que eu tenha, sei que, eventualmente, ele se tornará apenas o ícone, a referência que não pode mais criar novas próprias referências. Assim foi com Aldir Blanc, Dominguinhos, Hermeto Pascoal, recentemente.

Lô Borges
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Milton Nascimento
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    Foram pessoas como Lô, que eu, nascido em 74, tive de garimpar pra encontrar como joias prontas, ornando palácios musicais que me foram quase achados arqueológicos dentro de meu próprio tempo. Essa mineração eu fazia em sebos de vinil, de livros, na FM Universitária. Uma vez que tinha as gemas em mãos, deitava no chão frio do meu quarto e deixava o 3-em-1 da CCE (uma das primeiras compras de primeiros salários) fazer o seu trabalho: transformar-me; evoluir-me. E sim, eu já tinha consciência de que aquilo era um fogo de Prometeu. Talvez eu seja de uma geração que, por ser a última formada pelo rádio, tinha consciência do que um Trem azul, um Girassol da cor do seu cabelo e uma Paisagem da janela podiam fazer por mim. Lô, Milton, Beto Guedes, Fernando Brant, Márcio Borges! Como fui privilegiado de ter de ter precisado cavar fundo entre Xuxas e Betos Barbosas pra encontrá-los! Disse isto ao meu saudoso amigo Aloísio Menor, numa das últimas ocasiões em que falávamos sobre música, e era só do que falávamos: a raridade não está na baixa tiragem dos discos, mas sim na nossa dificuldade de tê-los, e, por isso mesmo, nós os valorizamos.

Milton Nascimento e Lô Borges - Clube da Esquina, 1972
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    Com a internet, claro, isso não foi mais tão difícil assim. A última música muito difícil de ser encontrada foi Gabriel, de Teca Calazans. Minha última raridade. Desde lá, há uns quinze anos, tem sido relativamente fácil encontrar na web discos como Via Láctea (1979) e Os Borges (1980), ambos obras-primas de Lô, e olha que eu não assino nenhum streaming.
    Como comecei este texto afirmando, já desisti de me colocar no lugar de um adolescente atual, ainda que um como eu, sedento de arte. O máximo que me disponho a fazer (desconfio que é o melhor que consigo) é tentar imaginar a mim mesmo hoje, com minha ignorância de 13 anos, criado por uma família também contemporânea, ainda que a mesma. Perdoem-me a crueldade da nostalgia, mas só consigo sentir piedade e uma certa desesperança. Talvez, um certo pavor, também. Provavelmente, eu jamais viesse a saber quem são Roberto Ribeiro, Altemar Dutra, Dolores Duran, que minha mãe tanto adorava. O próprio Milton talvez só me fosse conhecido pelo seu dueto com Criolo, este, conhecido ocasionalmente apenas por ser contemporâneo. Ainda assim, só pelo YouTube, e olhe lá! Imaginem o Lô.
    São tristes tempos para se morrer. Mesmo homenageado postumamente como merecido, o grande artista só vai encontrar sentimentos legítimos entre aqueles, talvez, que tenham até seus 35 anos. Pra quem fica, como traduziu Milton em Canção da América, originalmente, de Ricky Fataar, só resta alar o pensamento na lembrança cantada por quem partiu. Mas, que asas tem quem tem seus 13 anos num mundo artisticamente tão raso, construído mormente ao consumo da música como fast-food e à inanição reflexiva sobre si mesmo e estes tempos? Que lugar tem a janela lateral do quarto de dormir de Lô na vida de um adolescente que, musicalmente, é uma pessoa em situação de rua?
    Lembrou-me agorinha minha amiga maior, Carmélia Aragão: “se eu morrer, não chore não, é só poesia”, escreveu Márcio, seu irmão, pra que Lô nos encantasse. Hoje, o luto é um campo de girassóis da cor de todos os nossos cabelos, Carmélie.

Milton Nascimento com camiseta da Chico Rei
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03/11/25

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito foda, meu amigo! Realmente, eles se estão indo aos poucos, e alguns ainda em vida...

Anônimo disse...

Amigo sinto-me tão representada nas suas palavras. É um misto de tristeza pelos que se vão com a desesperança com o atual.

Anônimo disse...

Emocionante! Me vi no seu texto!