Número de sílabas (desde 11/2008)

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quarta-feira, 26 de junho de 2024

DICIONARIZAÇÃO

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    A cada dia, a palavra se distancia um pouco mais do que seria saudável a si mesma. Pensar e rememorar de acordo com o que dói e com o que se ama vão se encorpando em textos tanto mais físicos quanto fugentes e incapturáveis. O pensamento é um corpo que nasce adulto e velho, broca nas paredes, range-se nas portas e se escalavra em vincos e cunhas nas linhas do teto, substituindo a casa, impossibilitando-se como lar, para, em seguida, fragmentar-se em vapores de mormaço e amuo que enodam a garganta e criam afasias irrecuperáveis, além de cujos danos ele não deixa registro de sua existência.
    A palavra surge como sempre se processou: retratista, descritiva, exploradora, ousada, irresponsável. Contudo, rareia. Deve ser parte do fim da cadeia de eventos sobre os quais ela tem tentado iluminar sentidos, ou apenas um cansaço de existir sozinha, tendo nesse fim sua principal razão de ser. A palavra diz sem dizer há tempo demais, em sua opinião, talvez. Entretanto, como aqui, ela falha e tem falhado, criando mais confusão verborrágica do que a reflexão, provavelmente, precise. Já o pensar, sozinho e autônomo, sem sequer recorrer à memória e aos traumas, encorpa-se inconfundível, utilizando-se destes mais como adereços, sendo ele mesmo pai de sua própria pele. Ele se faz no desfazimento. Cria-se na desconstrução. E, nesse trânsito, no tempo dado à palavra para que ela o converta em corpo, o que fica são, no máximo, rastros, uma pedra virada pelo calcanhar, uma capoeira, uma vereda breve, tornada logo pelo mato no nada verde da inexistência de forma.
    Então, deixa-se para trás, passo a passo, o que motiva a palavra: a vida para além da experiência, o registro que, aos outros — o alheio, o relativo, o amigo, o circunstante —, certifica, informa e ressignifica a própria vida. Obsoleta-se vagarosamente a palavra, e o mundo que ela descreve vai perdendo a necessidade, assim como se insignificam os seus eixos mais profundos: os relacionamentos, as filiações, os afetos e desafetos. O pensar torna o viver uma espera por ondulações de diferentes intensidades e comprimentos que afligem os sentidos e tangem a vida para cada vez mais longe do próprio viver. São ermos em que a palavra, vendo-se inútil, recorre à sua subsequente única forma possível: nomes para as coisas; verbos para as ações; adjetivos para os estados; advérbios para os modos. O enorme mausoléu do vocabulário, o cálcio dos ossos das palavras. O verbete. O lexema.
    A palavra se esvaece e dá-se a compor túneis e câmaras, às quais recorre primeiro como abrigo, depois, como residência, para, enfim, passar à existência de dicionário. Dicionários são túmulos: um memorial de esqueletos descarnados, uma aula de anatomia que desconsidera as vidas que a palavra encarnou.
    Nessa caverna, o então pensamento — agora fantasma —, livre da necessidade alheia de que tivesse forma, segmentos, sintaxe, livre do próprio pensar, oscila sem juízo ou fim, explorando a profundidade sem se dar conta de si, do tempo e dos limites — foi vária a palavra. No fim, os termos são outros: o próprio fim, assim como foram ela mesma e a vida, é só uma palavra.

26/06/24

terça-feira, 25 de junho de 2024

INESCAPÁVEL


o dia está lindo
não há mortos nas ruas
nem abandonos nos bares
todos os animais têm seus donos, e todos os bebês, seios
não há fome nos pratos
nem pobreza nas mãos
os carros, gentis, trafegam com o único ruído inevitável
os escritórios acolhem
as escolas acolhem
as igrejas sublimam
e tudo, cada qual com sua paz, resulta
na harmonia e na intransmutabilidade das almas
com os corpos
o ódio, a miséria dos homens,
a soberba e a egolatria
são contos em histórias de muito longe,
quando o mundo era apenas aqui
e nada era possível

hoje, o dia é lindo
e a vida é a grande certeza
inescapável

07/05/24

domingo, 23 de junho de 2024

O ESPELHO DA SALA


o espelho da sala precisa de mim
por isso, permito
que me desfragmente no conjunto imperfeito
das partes que, tão cuidadosamente,
rendi ao despedaçamento
de ir esquecendo-me
aqui e ali
no alheio dos cromos de espelhos estranhos
onde deixo refletidas
coisas que vou deixando de ser

todas, inúteis
talismãs num relicário
nenhuma, digna de fé

mas o espelho me agride
o espelho da sala me comprime
à unidade compreensível e inequívoca:
uma imagem para um nome
um papel-carbono certificante
de uma certidão de nascimento
de pequeninos diplomas
de menores ainda documentos
incontáveis e obsoletas células cartoriais
componentes do reflexo
de que precisa tão desgraçadamente
o espelho de minha sala

verifico as aranhas e suas teias
o mofo e o grelado
as gretas e os cupins:
tudo está conforme

asseio o cabelo e a barba
enchapelo-me
asseguro-me de meus patuás
e o abandono como de costume

mas o espelho sempre me aguarda
no escuro ou no claro de minha sala
no ofício pueril de precisar de mim
como se em si me resguardasse
como quem sabe, mais que eu,
a preciosidade de existir

22/06/24

domingo, 9 de junho de 2024

LAPSOS

Fabrizio Torchia - The Phantoms of the Brain
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a memória é isto:

fantasmas de afetos e desafetos
em corpos que não se lembram mais de mim;

é existir em lugares
que não existem mais;

é ser um país de apátridas
em exílio;

é a súbita queda findando um sonho,
que não é súbita nem é queda,
mas continua caindo e caindo;

é dormir sem remissão;

é acordar sem consciência;

é esmolar sem esperança;

é viver sem a matéria;

é morrer sem a matéria
e deixar que a matéria me resgate;

é um corromper-se sádica
em punição a mim;

é um ser exata e maquinal
em detrimento de mim;

é, quando o agora colapsa,
o amontoado de lapsos
de todos os colapsos anteriores;

é, por fim, um disfarçar-se
em pensamento intrusivo,
em ideia desastrada,
em consideração absurda,
em projeção fantástica,
em autoanálise impiedosa,
em fantasia de poder,
em escape,
em fuga,
em mim.

08/06/24