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domingo, 23 de junho de 2024

O ESPELHO DA SALA


o espelho da sala precisa de mim
por isso, permito
que me desfragmente no conjunto imperfeito
das partes que, tão cuidadosamente,
rendi ao despedaçamento
de ir esquecendo-me
aqui e ali
no alheio dos cromos de espelhos estranhos
onde deixo refletidas
coisas que vou deixando de ser

todas, inúteis
talismãs num relicário
nenhuma, digna de fé

mas o espelho me agride
o espelho da sala me comprime
à unidade compreensível e inequívoca:
uma imagem para um nome
um papel-carbono certificante
de uma certidão de nascimento
de pequeninos diplomas
de menores ainda documentos
incontáveis e obsoletas células cartoriais
componentes do reflexo
de que precisa tão desgraçadamente
o espelho de minha sala

verifico as aranhas e suas teias
o mofo e o grelado
as gretas e os cupins:
tudo está conforme

asseio o cabelo e a barba
enchapelo-me
asseguro-me de meus patuás
e o abandono como de costume

mas o espelho sempre me aguarda
no escuro ou no claro de minha sala
no ofício pueril de precisar de mim
como se em si me resguardasse
como quem sabe, mais que eu,
a preciosidade de existir

22/06/24

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