eu sou Fabiano e sou Baleia
no sertão de preás gordos
sou Rebeca Buendía com seu saco de ossos
sua pele verde e olhos fosforescentes
sou José Arcadio louco atado ao castanheiro
e Úrsula diminuta na mentira de sua morte
sou Vadinho no chão do Domingo de Carnaval
sou Rozilda e seu fel de Quarta-Feira de Cinzas
sou Sancho crédulo de sua ilha
sou Quejada alucinado e só num mundo grande
grande demais
sou Ishmael lúcido entre loucos
sou Ahab inconcluso e espedaçado
pela irracionalidade branca
sou a Rosa na redoma
o baobá e o vulcão
no pequeno asteroide ao pôr do sol
esperando sem esperar
o ofício da Serpente
sou Flor, Gabriela e Dora
e o cansaço de guerra de Tereza
sou Maria do Carmo embuchada de inevitabilidades
na rede de João da Mata
e a faca de peixes de Bertoleza
libertando o próprio ventre
ante a possibilidade do horror
sou Margarida, vulgo Mocinha
pequena e escura
descansando da vida dos brancos
na pedra da fonte da estrada de Petrópolis
e a esvaziada Macabéa
preenchida por um Mercedes amarelo
na rua atravessada
sou Severino do finado Zacarias
indagando vida e morte à beira do Capibaribe
e sou Mestre Carpina
em cuja calma nasce outro Severino
que também sou eu
sou Amaro e Aleixo no porão do navio
e o punhal assassino de Crapiúna
sou a lavação dos peitos mortos de Diadorim
e a traição do torso nu de Luzia-Homem
sou o cínico Brás e seus emplastros
o inepto Bentinho em turvação
frente ao mar ressaqueado de Capitolina
sou tantos, e não sou nada
nem o sentimento do mundo tenho
nunca fui o infante sadio e grimpante
nunca guardei rebanhos
nunca fui a Pasárgada
nem conheço rei algum
ou felicidade, ainda que clandestina
sou um caractere apenas
um espaço-em-branco
vasilhame que o outro mundo preenche
e que este mundo rotula e enfileira na prateleira
sou também a boca que bebe
ora no copo, ora no gargalo, ora no mar
as pessoas que por mim trafegam
e transpassam como se meu único trabalho
fosse registrá-las
e esquecê-las
esquecendo, existo
e, através de mim, existem todos
22/02/24

Este blogue se destina ao uso artístico da linguagem e a quaisquer comentários e reflexões sobre esta que é a maior necessidade humana: a comunicação. Sejam todos bem-vindos, participantes ou apenas curiosos (a curiosidade e a necessidade são os principais geradores da evolução). A casa está aberta.
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024
CARACTERES
Gérard Dubois - Moby Dick
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domingo, 18 de fevereiro de 2024
MANEJO
a mão esquece
quem é que a traz ao pulso
esquece que tem braço
e este, que tem torso
e este, que é casa
que deve resistir a tudo
não pode a mão
seguir-se de uma oferta
um aperto, um entrelace
se são do corpo
a carne para o soco
e o rosto para a tapa
se é no corpo
o espírito que se imola
perdões
é necessário que existam
mas nunca em prejuízo
da dor
rasgada a tratores
na terra do corpo
sob a escusa de estradas
e vias públicas
no volante, a mão esquece
quem é o condutor
que fez do nascedouro
a incerteza da partida
e, da vida, a morte
entre tráfegos e engarrafamentos
a mão de nada sabe
das sentenças que assina
18/02/24
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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024
JARDINZINHO ORDINÁRIO
mandei construir um cocho
na fachada de minha casa
onde plantaria um pequeno jardim
nele, sonhei chananas, mandacarus e girassóis
e outras tantas que carrego comigo
no mais íntimo
feito o cocho, plantado o jardim,
vieram ladrões
e arrebataram o que crescia
mudei as plantas:
cravei espadas-de-ogum e um jasmineiro
e deixei o matinho vicejar
o que o asfalto e as caminhadas
não permitem
hoje, pingam jasmins na minha janela,
e me protege Ogum de todo o mal,
e a beldroega flora amarela,
e ramam outras que não sei
na frente de minha casa,
o possível sobrepujou o projetado
e, como na vida,
como em tudo,
escancarou a janela de sua lindeza
no inusitado do ordinário
permita-se o ordinário
na fachada de cada coração
01/02/24
na fachada de minha casa
onde plantaria um pequeno jardim
nele, sonhei chananas, mandacarus e girassóis
e outras tantas que carrego comigo
no mais íntimo
feito o cocho, plantado o jardim,
vieram ladrões
e arrebataram o que crescia
mudei as plantas:
cravei espadas-de-ogum e um jasmineiro
e deixei o matinho vicejar
o que o asfalto e as caminhadas
não permitem
hoje, pingam jasmins na minha janela,
e me protege Ogum de todo o mal,
e a beldroega flora amarela,
e ramam outras que não sei
na frente de minha casa,
o possível sobrepujou o projetado
e, como na vida,
como em tudo,
escancarou a janela de sua lindeza
no inusitado do ordinário
permita-se o ordinário
na fachada de cada coração
01/02/24
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