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domingo, 19 de abril de 2020

BASTANTE

Foto: Fernando de Souza

Atila Iamarino disse em entrevista que o mundo como conhecemos não existe mais. Neste confinamento, influencers e blogueiros postam TBT de um mundo que nunca vi, onde nunca estive, um mundo outro, vedado a quem sou. Nada disso me enfada. Até mesmo o confinamento a que chamam quarentena quase não me é novo ou anormal. O que me atormenta nem é o desaparecimento do mundo que conheci, que eu, individual e unicamente, experienciei. Porque esse mundo, raríssimas vezes registrado em fotos, mudou, aterrou-se, enterrou-se, mas, como é matéria, continua lá, numa matéria diferente. Pode ser escavado, limpo, polido, exposto novamente à luz do Sol. Quem não existe mais sou eu. Não existo como existi nas fotos, não pertenço como, um dia, com um fôlego heroico, tomei posse. Hoje, memórias escavacadas nessa arqueologia rústica, às pressas, apavorada pelo desaparecimento possível do que, intimamente, nem creio mais haver, são envasadas em álcool, penduradas numa parede de manipansos incompletos. O meu pavor é, após tudo isto, se teimar a nostalgia retornar à guisa de reencontro, perder-me definitivamente, mudo e pasmo, engasgado com um ar que só existe para engasgar-me, estrangeiro ilegal pedindo asilo num país de vento. Como andei tanto, estando imóvel? Como me perdi trancado na clausura do comodismo? Quem fui, quem quer que tenha sido, é um processo prescrito, uma injustiça irreparável. Dói. Sabe amaríssimo, insuportável. Exige, impõe obliteração. Mas dói-me ainda mais matar o cadáver, pois que sei a profundidade da cova em que jaz, donde preciso arrancá-lo, olhar-lhe as cavas cranianas onde orbitaram as retinas que viram o que não sou capaz de esquecer e deixá-lo em paz. Tremo, juro que tremo. Não há volta. Sou agora o que não deve mais lembrar, e esvaziar-me o peso e as horas requer todo o tempo restante. Serei bastante?

18/04/20

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