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sábado, 17 de maio de 2025

SEIXO ACIDENTAL

Pedra de quartzo rosa coletada de um canteiro central de Fortaleza.
(Clique na imagem para ampliá-la.)

não é meu o corpo
de que sou sombra,

tampouco o chão
onde me deito
o é

esta tarde, este sol
e este equador evaporante
me carregam pelas calçadas,
por entre os carros
e por debaixo das portas:

folha e pó,
que o vento esquece por aí
em algum de seus quarenta graus

fico, me greto
nas falhas dos rodapés

me varrem,
e assim faço parte
das casas que visito

o que é meu
são o caminho para,
o espaço entre,
a divisão de
e a distância a

isso de ter de ser
é como dar nome a bicho,
a planta, a vento:
desculpa a vida

aceito o acidente de ser
apesar do corpo,
apesar das roupas
e dos bons-dias

e, apesar de todo o adeus
que me acompanha,
saúdo desconhecidos,
trabalho a palavra,
frequento hostilidades,
cato seixos de quartzo e mica,
búzios e refugos abandonados
por mudanças alheias
e me muno de luz e som
por toda parte
todo o tempo

ser por um acaso
e, por várias vezes,
deixar de ser
acabam por doer intenso,
mais que viver
propositalmente,

porém é daí que tiro
voz, palavra e silêncio,

e todo o pouco que sou
— sem corpo, sem chão,
sem nome —,
simplesmente, acontece

17/05/25

sábado, 10 de maio de 2025

TRANSAÇÕES MARÍTIMAS

Pequena ilha

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

na ilha, são as ondas que trazem novidades:
lixo da melhor qualidade, do plástico mais cancerígeno
a mimos de MDF, bibelôs de cacos de vidro
e cartas, muitas cartas de amor terceirizadas
— narrativas meméticas elaboradas pela mais sintética IA
e balés tiktokeanos de hipnótica sensualidade.

da ilha, a maré que leva alma e conteúdos midiáticos
também remete fragmentos de pele e sangue,
além de pelos de toda sorte e cascabulhos de dentes
com destino aos recifes,
onde todo um viveiro de xaréus e anêmonas
fazem as vezes de pets e receptores.

há também extravios,
e calha de um tudo encalhar em outras ilhas;
e maravilhar etnias distintas de canibais, e pigmeus,
e outras gentes mais evoluídas,
que acreditam que o mar lhes prega peças
em que homens mimetizam horrores desconhecidos
e outras coisas incompreensíveis.

também há cartas e canções
que cabe ao vento compor em suas tempestades
e muitos, quase infinitos
olhares desendereçados
— cargueiros abarrotados de especiarias
e fartos desjejuns
que têm na ausência de destinatários
a sua própria e particular viagem.

deitam-se na preamar à espera da vazante,
garrafas prenhes de naufrágios que são,
e se lançam sonâmbulas,
engravidando-se ainda mais
à medida que mais naufragam.

a elas, o mar as deixa em paz,
que jaez de quem deriva é sonho
tal qual o de espírito que perambula
pelos cantos escuros de uma casa:
sonhar é deixar-se dormir,
e partir sem destino é como regressar.

10/05/25

domingo, 4 de maio de 2025

ESQUECER PARA LEMBRAR

Art Never Sleeps - Stick to the plan

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


um cachorro parado, olhando lado a lado,
atravessa
como um equilibrista que pudesse correr
sobre a corda bamba.

um carro desacelera;
outros, não.

é assim todo dia, em toda parte:
cidades, e gentes, e chãos de navalha,
e riscos de morte que talham a vida.

pedaços que nunca se encaixam
e ondulam no vento
junto a sacolas plásticas, fuligem e folhas
despersonificam-se em paisagens e contextos,
em estatísticas incômodas,
em conteúdos produzidos para as redes sociais.

são muitos, tantos quanto os matinhos
que prefeituras mandam aparar de vez em vez,
e por aí estão, como os passinhos rápidos e inocentes
riscando de unhas negras a casca negra do asfalto.

é não se chegando ao outro lado
que se chega ao outro lado.

04/05/25