Essa história, que, por si só, já é uma amostra do quão patológica é a condição humana, principalmente, no que diz respeito à objetificação, à fetichização e à decorrente desumanização de nós mesmos, serviu de livre inspiração para um filme dirigido pela tunisiana Kaouther Ben Hania chamado “The man who sold his skin” (“O homem que vendeu sua pele”), lançado em 2021, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, vencedor de melhor roteiro (inspirado no curta “Skin”, de Roald Dahl, de 1952) no Festival Internacional de Cinema de Estocolmo e de melhor ator (Yahya Mahayni) no Festival internacional de Cinema de Veneza, no mesmo ano.
O filme de Ben Hania usa a premissa da história de Steiner como os seguintes pontos de acontecimento na vida de Sam Ali, personagem interpretado por Mahayni: as costas tatuadas pelo artista famoso, as exibições em museus e a venda da pele a um colecionador rico. Contudo, o que ela adicionou ao enredo é o que torna essa obra algo muito maior do que Hollywood seria capaz de fazer. Sam é um homem sírio que é preso porque, em uma declaração de amor à sua namorada Abeer (Dea Liane), com quem vivia um amor não aceito pelos pais dela, disse, em um trem, em alto e bom som aos outros passageiros: “Senhoras e senhores, esta é uma revolução. Queremos a liberdade, então vamos ser livres”. Naquele momento, eles haviam decidido se casar, porém, no contexto do genocídio promovido pelo governo de Bashar al-Assad, no qual a repressão era onipresente, uma filmagem feita e postada por um dos passageiros leva a polícia a prender Sam. Um primo policial facilita sua fuga da prisão, e sua irmã o atravessa clandestino em seu carro pela fronteira com o Líbano, ao passo que Abeer, diante da situação, aceita o casamento forçado pela família com Ziad (Saad Lostan). Em Beirute, num trabalho miserável, ele costumava entrar de penetra em eventos para se alimentar e, numa dessas festas, foi abordado pelo artista Jeffrey Godefroi (Koen De Bouw), que lhe propõe ser moldura viva de seu trabalho em troca de um visto para ir para a Bélgica, onde seria, finalmente, “livre”, porém às custas de ter o próprio Schengen, o documento de imigração, tatuado nas costas e ser exposto em exibições em museus, pelo que receberia um bom pagamento. De início, Sam, que vê naquilo uma chance de fugir para o “lado certo do mundo” e reencontrar Abeer, que trabalhava como tradutora juramentada em Bruxelas, acredita ter dado início à sua felicidade, entretanto vai descobrir que comprometera muito mais do que a própria pele para poder atingi-la.
“O homem que vendeu sua pele” transforma uma inspiração em uma história real numa alegoria da coisificação do ser humano. Sam é tratado como uma coisa criminosa em Raqqa, sua cidade, por manifestar o seu amor. Em Beirute, não tinha identidade de indivíduo: era um refugiado sírio e, posteriormente, uma tela viva, ou seja, um homem-coisa, ou uma coisa-homem a ser usada pelo artista mediante contrato. Em Bruxelas, é abordado por membros de um movimento pelos direitos civis dos sírios, que veem em seu caso mais um abuso contra aquele povo e tentam cooptá-lo, sem perceber que o livre-arbítrio com que Sam tomou sua decisão de ser livre era maior que sua causa, ou seja, foi-lhe proposto ser um símbolo.
Pessoa genérica, estrangeiro sem identidade, fetiche artístico e símbolo despersonalizado, tudo isso foi atribuído a Sam, porém sua trajetória em busca de si mesmo como homem livre e de seu amor com Abeer é o centro de toda a narrativa, a qual, como eu mencionei anteriormente, poderia ser convertida na coisa mais rasa e desimaginativa que uma produção hollywoodiana tanto costuma conceber aos borbotões. O filme é preciso em focar no drama pessoal do protagonista de forma que suas costas tatuadas acabam sendo mais um deflagrador da trajetória e das peripécias de Sam do que o propósito da narrativa, conforme se nota no que diz Jeffrey, pouco antes de tatuá-lo, a um documentarista que lhe pergunta “Mas, por quê, um visto Schengen?”:
“— Mais uma vez, vivemos em uma era muito escura, onde, se você é sírio, afegão, palestino etc., é ‘persona non grata’. Os muros sobem. E eu só fiz de Sam uma mercadoria, uma tela, e agora ele pode viajar pelo mundo. Porque, nos tempos em que vivemos, a circulação de mercadorias é mais livre do que a circulação de seres humanos. Daí, transformando-o num tipo de mercadoria, ele agora será capaz, pelas convenções de nosso tempo, de recuperar sua humanidade e sua liberdade.”
O filme de Ben Hania denuncia os horrores da guerra civil e os limites reais e abstratos que pessoas na condição de vítimas dela são capazes de cruzar. Todavia, metalinguisticamente, o que me parece que ela conseguiu com seu filme foi propor uma reflexão de como a pele de Sam e a própria película são objeto de fascínio enquanto composições (aquela, vendida por milhões de euros; esta, vencedora de prêmios em festivais internacionais de cinema), ao passo que aquilo que está retratado nelas é descartado enquanto denúncia, enquanto análise das tragédias impostas por governantes de ditaduras ou por multimilionários às pessoas comuns, cujos corpos são objetificados ou como indivíduos desprovidos de direitos, no caso das vítimas de Bashar al-Assad ou como, no caso de Sam, fetiche artístico para a apreciação de “elites” europeias, principalmente. O visto Schengen tatuado em Sam e o filme “O homem que vendeu sua pele” chamam a atenção, são vistos, valorados, comerciados, viram objetos de apreciação e de ostentação, mas a realidade que eles denunciam, não. Esta é, como costuma acontecer com os espíritos, invisibilizada pelo “glamour” dos corpos, das formas, do produto. Ben Hania me pareceu consciente de que a sua obra seria vista, mas o espírito dela, a sua essência, o seu teor, seria obliterado tanto pela exploração comercial do mercado cinematográfico quanto pela nossa preguiça de pensar a respeito dela.
Obviamente, não vou estragar a experiência do filme, entregando aqui o seu desfecho, mas vou transpor o último diálogo entre Sam e Jeffrey, o qual ilustra muito bem a metalinguagem da obra:
“— Claro, é... uma boa história para contar. Para a posteridade. Como derrotamos o sistema, Sam.
— Jeffrey, você é engraçado, sério. Você, falando sobre derrotar o sistema? A pele será exibida nos mais prestigiados museus do mundo e, ainda que descubram um dia, só irá valorizar mais. O sistema o ama, Jeffrey. É idolatrado, faça o que fizer.
— Sabe o que é pior do que ser parte do sistema? É ser ignorado por ele.”
“The man who sold his skin” é desses filmes que se utilizam de uma trama para despertar uma percepção bem mais ampla do que a nossa própria realidade é capaz de incorporá-la. A narrativa fala de um homem em busca do amor e da liberdade, mas também trata de denunciar a guerra e o mercantilismo dos corpos, mas o que ela quer mesmo é dizer a nós que, num sistema que tudo reifica, que tudo devora e converte em mercadoria, nós mesmos, enquanto consumidores (ou espectadores), optamos por permanecer invioláveis aos verdadeiros sentidos que, de quando em quando, um “produto” esfrega em nossa cara. Dessa forma, consumimos e somos consumidos, teimando em ignorar que somos partes de uma cadeia exploratória e moedora de gente, confortáveis e indignados com aquilo que nos é exposto, como apreciadores de “Guernica”, ou da pele de Sam, ou do próprio filme que esta crítica analisa.
Assistam, pelo menos, atentos.
11/12/24