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domingo, 15 de dezembro de 2024

A DELICADEZA DE MARCEL

Dean Fleischer Camp - Marcel the Shell with Shoes on, 2021
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    Marcel, the Shell with Shoes on (Marcel, a Concha de Sapatos) é um filme estadunidense de 2021, distribuído pela A24, que mistura live action com animação em stop-motion e que concorreu ao Oscar, ao Bafta e ao Globo de Ouro de 2023 nessa categoria. Ele se enquadra no subgênero mockumentary (mistura da estética de documentário com uma perspectiva ficcional tradicional, geralmente, humorística, como em Borat), e é dirigido, corroteirizado e atuado por Dean Fleischer Camp, em sua estreia em longas. Ele narra a história de Marcel (Jenny Slate, também uma dos roteiristas), uma conchinha que se vê apartada de sua comunidade e vive com sua avó Connie (Isabella Rossellini) em uma casa que foi alugada por Dean (Dean Fleischer Camp), que resolve filmar um documentário sobre ele e publicar no YouTube.


Dean Fleischer Camp - Marcel the Shell with Shoes on, 2021
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    A delicadeza e a profundidade na simplicidade elementar de Marcel e sua rotina quebram completamente as expectativas sobre uma possível narrativa waltdisneyiana da premissa de uma concha antropomorfizada como uma criança sobrevivente num mundo perigoso e imenso. Fleischer Camp trouxe a ideia de uma série de curtas que já havia produzido sobre Marcel, e desenvolve no longa, por meio da perspectiva de “descobrimento do mundo” do protagonista, uma análise sobre nosso tempo, nossa superficialidade, nossa indiferença e, principalmente, nosso egocentrismo e nosso individualismo. O paradoxo de ser uma concha (o símbolo do ensimesmamento) quem denuncia por meio da observação a precariedade de nossas relações e a quase total ausência do nosso senso de comunidade é o elemento principal na alegoria dessa narrativa. É um filme tão cativante que não se deseja que acabe mais, apesar de ser totalmente centrado numa rotina repetitiva e monótona de uma conchinha numa casinha de uma cidadezinha.
    Assistam encantados.

15/12/24

sábado, 14 de dezembro de 2024

VINTE POR NOVE


escrever é um trabalho que me dou
sem a preposição a
objeto direto regido por verbo
bi
tran
si
ti
vo

presente que se dá
num acontecimento
maior que eu

porém e porque
carrega uma vida inteira pretérita
e imperfeita

não sou como o homem
que vai ali e compra pão
que atravessa a rua
que banha a quinta-feira
com sabonete para a sexta

monto o meu calendário de cubinhos
e o dia virado
é quando digiro o pão
comprado amanhã

a fome não cabe no texto
a fome é o texto
devorando tudo

enquanto escrevo, observo
como se não fosse só
a palavra que me veste

escrever é o trabalho de queimar
as roupas na fogueira
a identidade
os dentes de leite

é montar vigília à espera
da escuridão

14/12/24

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

O HOMEM QUE VENDEU SUA PELE

 Kaouther Ben Hania - “The man who sold his skin”, 2020
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    Um artista belga chamado Wim Delvoye finalizou, em 2008, após 40 horas de trabalho distribuídas em dois anos, uma tatuagem de costas inteiras em Tim Steiner, um suíço que hoje ganha a vida se apresentando como “tela viva” desse trabalho de Delvoye, que foi vendido a um colecionador de arte alemão chamado Rik Reinking, em um acordo que garantiu a Steiner um terço do valor de compra de sua própria pele, em troca de sua participação em exibições. Steiner concordou, além disso, em ceder seu corpo, após sua morte, para ser esfolado a fim de que suas costas sejam estiradas e enquadradas numa moldura que será adicionada permanentemente à coleção de Reinking, à maneira do antigo costume japonês de colecionar peles tatuadas de pessoas mortas.


Wim Delvoye - “Tim”, 2008
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    Essa história, que, por si só, já é uma amostra do quão patológica é a condição humana, principalmente, no que diz respeito à objetificação, à fetichização e à decorrente desumanização de nós mesmos, serviu de livre inspiração para um filme dirigido pela tunisiana Kaouther Ben Hania chamado “The man who sold his skin” (“O homem que vendeu sua pele”), lançado em 2021, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, vencedor de melhor roteiro (inspirado no curta “Skin”, de Roald Dahl, de 1952) no Festival Internacional de Cinema de Estocolmo e de melhor ator (Yahya Mahayni) no Festival internacional de Cinema de Veneza, no mesmo ano.
    O filme de Ben Hania usa a premissa da história de Steiner como os seguintes pontos de acontecimento na vida de Sam Ali, personagem interpretado por Mahayni: as costas tatuadas pelo artista famoso, as exibições em museus e a venda da pele a um colecionador rico. Contudo, o que ela adicionou ao enredo é o que torna essa obra algo muito maior do que Hollywood seria capaz de fazer. Sam é um homem sírio que é preso porque, em uma declaração de amor à sua namorada Abeer (Dea Liane), com quem vivia um amor não aceito pelos pais dela, disse, em um trem, em alto e bom som aos outros passageiros: “Senhoras e senhores, esta é uma revolução. Queremos a liberdade, então vamos ser livres”. Naquele momento, eles haviam decidido se casar, porém, no contexto do genocídio promovido pelo governo de Bashar al-Assad, no qual a repressão era onipresente, uma filmagem feita e postada por um dos passageiros leva a polícia a prender Sam. Um primo policial facilita sua fuga da prisão, e sua irmã o atravessa clandestino em seu carro pela fronteira com o Líbano, ao passo que Abeer, diante da situação, aceita o casamento forçado pela família com Ziad (Saad Lostan). Em Beirute, num trabalho miserável, ele costumava entrar de penetra em eventos para se alimentar e, numa dessas festas, foi abordado pelo artista Jeffrey Godefroi (Koen De Bouw), que lhe propõe ser moldura viva de seu trabalho em troca de um visto para ir para a Bélgica, onde seria, finalmente, “livre”, porém às custas de ter o próprio Schengen, o documento de imigração, tatuado nas costas e ser exposto em exibições em museus, pelo que receberia um bom pagamento. De início, Sam, que vê naquilo uma chance de fugir para o “lado certo do mundo” e reencontrar Abeer, que trabalhava como tradutora juramentada em Bruxelas, acredita ter dado início à sua felicidade, entretanto vai descobrir que comprometera muito mais do que a própria pele para poder atingi-la.
    “O homem que vendeu sua pele” transforma uma inspiração em uma história real numa alegoria da coisificação do ser humano. Sam é tratado como uma coisa criminosa em Raqqa, sua cidade, por manifestar o seu amor. Em Beirute, não tinha identidade de indivíduo: era um refugiado sírio e, posteriormente, uma tela viva, ou seja, um homem-coisa, ou uma coisa-homem a ser usada pelo artista mediante contrato. Em Bruxelas, é abordado por membros de um movimento pelos direitos civis dos sírios, que veem em seu caso mais um abuso contra aquele povo e tentam cooptá-lo, sem perceber que o livre-arbítrio com que Sam tomou sua decisão de ser livre era maior que sua causa, ou seja, foi-lhe proposto ser um símbolo.
    Pessoa genérica, estrangeiro sem identidade, fetiche artístico e símbolo despersonalizado, tudo isso foi atribuído a Sam, porém sua trajetória em busca de si mesmo como homem livre e de seu amor com Abeer é o centro de toda a narrativa, a qual, como eu mencionei anteriormente, poderia ser convertida na coisa mais rasa e desimaginativa que uma produção hollywoodiana tanto costuma conceber aos borbotões. O filme é preciso em focar no drama pessoal do protagonista de forma que suas costas tatuadas acabam sendo mais um deflagrador da trajetória e das peripécias de Sam do que o propósito da narrativa, conforme se nota no que diz Jeffrey, pouco antes de tatuá-lo, a um documentarista que lhe pergunta “Mas, por quê, um visto Schengen?”:
    “— Mais uma vez, vivemos em uma era muito escura, onde, se você é sírio, afegão, palestino etc., é ‘persona non grata’. Os muros sobem. E eu só fiz de Sam uma mercadoria, uma tela, e agora ele pode viajar pelo mundo. Porque, nos tempos em que vivemos, a circulação de mercadorias é mais livre do que a circulação de seres humanos. Daí, transformando-o num tipo de mercadoria, ele agora será capaz, pelas convenções de nosso tempo, de recuperar sua humanidade e sua liberdade.”
    O filme de Ben Hania denuncia os horrores da guerra civil e os limites reais e abstratos que pessoas na condição de vítimas dela são capazes de cruzar. Todavia, metalinguisticamente, o que me parece que ela conseguiu com seu filme foi propor uma reflexão de como a pele de Sam e a própria película são objeto de fascínio enquanto composições (aquela, vendida por milhões de euros; esta, vencedora de prêmios em festivais internacionais de cinema), ao passo que aquilo que está retratado nelas é descartado enquanto denúncia, enquanto análise das tragédias impostas por governantes de ditaduras ou por multimilionários às pessoas comuns, cujos corpos são objetificados ou como indivíduos desprovidos de direitos, no caso das vítimas de Bashar al-Assad ou como, no caso de Sam, fetiche artístico para a apreciação de “elites” europeias, principalmente. O visto Schengen tatuado em Sam e o filme “O homem que vendeu sua pele” chamam a atenção, são vistos, valorados, comerciados, viram objetos de apreciação e de ostentação, mas a realidade que eles denunciam, não. Esta é, como costuma acontecer com os espíritos, invisibilizada pelo “glamour” dos corpos, das formas, do produto. Ben Hania me pareceu consciente de que a sua obra seria vista, mas o espírito dela, a sua essência, o seu teor, seria obliterado tanto pela exploração comercial do mercado cinematográfico quanto pela nossa preguiça de pensar a respeito dela.
    Obviamente, não vou estragar a experiência do filme, entregando aqui o seu desfecho, mas vou transpor o último diálogo entre Sam e Jeffrey, o qual ilustra muito bem a metalinguagem da obra:
    “— Claro, é... uma boa história para contar. Para a posteridade. Como derrotamos o sistema, Sam.
    — Jeffrey, você é engraçado, sério. Você, falando sobre derrotar o sistema? A pele será exibida nos mais prestigiados museus do mundo e, ainda que descubram um dia, só irá valorizar mais. O sistema o ama, Jeffrey. É idolatrado, faça o que fizer.
    — Sabe o que é pior do que ser parte do sistema? É ser ignorado por ele.”
    “The man who sold his skin” é desses filmes que se utilizam de uma trama para despertar uma percepção bem mais ampla do que a nossa própria realidade é capaz de incorporá-la. A narrativa fala de um homem em busca do amor e da liberdade, mas também trata de denunciar a guerra e o mercantilismo dos corpos, mas o que ela quer mesmo é dizer a nós que, num sistema que tudo reifica, que tudo devora e converte em mercadoria, nós mesmos, enquanto consumidores (ou espectadores), optamos por permanecer invioláveis aos verdadeiros sentidos que, de quando em quando, um “produto” esfrega em nossa cara. Dessa forma, consumimos e somos consumidos, teimando em ignorar que somos partes de uma cadeia exploratória e moedora de gente, confortáveis e indignados com aquilo que nos é exposto, como apreciadores de “Guernica”, ou da pele de Sam, ou do próprio filme que esta crítica analisa.
    Assistam, pelo menos, atentos.

11/12/24

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

PAISAGEM COM MÃO INVISÍVEL


    Paisagem com mão invisível, filme estadunidense de 2023, dirigido por Cory Finley, é uma alegoria sobre o modus operandi da dominação e da exploração do mercado (a “mão invisível” é um conceito estabelecido por Adam Smith em Teoria dos sentimentos morais, bibliazinha “farialimer” escrita em 1759) sobre a sociedade e o cidadão comum. Vale cada segundo empregado, embora seja suave na ironia e no sarcasmo. Aponta, sem ser agressivo (tem leves doses de bom humor), a conversão patética e humilhante da humanidade em “bovinidade” ante a falácia do neoliberalismo. Excelente pedida pra se refletir sobre o nosso presente sem que isso cause queimaduras de 3° grau na alma.
    Assistam de sapatênis.