Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

sábado, 28 de setembro de 2019

CANSEIRA

Quando era só espírito,
eu me deixava ficar entre as multidões.
Cada gente tem de líquido
as saudades, os ciúmes e as luxúrias,
mar do qual fui peixe.

Entre elas, escancarava meus opérculos
e me permitia afogar de seus secretos,
e tudo quanto éramos, éramos até a morte.

Daí, nasci,
e, do caldo antes suave,
agora é fel,
e só tenho de mim para beber.
Neste borralho de corpo,
neste borracho de alma,
sou Tântalo afogado
no agreste desta embriaguez.

Cansei desse negócio dídimo de corpo e alma!
Esse compromisso insuportável que o corpo tem
com tudo que o cerca!

Que é a vida senão essa cadência de encontros sem busca,
esse afogar-se no seco do mar de gente?
A vida é essa experiência físico-carnal,
essa obrigatoriedade de ter de achar uma razão que vista a existência
— a três dedos acima do joelho, no mínimo.

Melhor seria ser só espírito e escolher
— ser espírito é escolher —
seres e estares, peles e plasmas, ritos e caos.

Melhor que jamais se sentir completo
e acomodar-se ao incômodo completo do próprio corpo
e suas propriedades físicas
como o equilíbrio e a azia
e essa rústica sentimentalidade do amor seminal
seria pairar sólido num oceano
que se inventa e desinventa apenas para isso.

Melhor seria, a amar, ser amor,
e isso só se pode
evolando-se e chovendo e tornando-se parte do chão
e virando caule e sombra e fim de tarde
e voltando ao íntimo da nuvem e…

Melhor é ser só,
que o espírito é esse só bastante de tudo,
de possibilidades inacreditáveis e íntimas.

23/05 e 26/06/19

Nenhum comentário: