há um pouco de dor dentro dessas tardes
a janela trincada do trem refrata um mundo sempre passante
sempre mais cheio de sofrimento que o meu aqui dentro
e a grandeza da vida dos outros torna ainda menores a pequenez e a miséria
e a mesquinharia e a avareza do meu sofrimento
vejo um aleijado
— poderia ser eu, poderiam ser meus filhos —
um esmoler sem pés gritando Salmos na porta da CEF
— até os pombos da Praça, meu Deus!, até a fauna urbana! —
o mendigo róseo passando fezes na carne podre das feridas
a moça só
o crente alucinado
as crianças de rua
— todos me humilhando a dor com as suas —
e, de todos, o olhar ignoto e a desimportância de mim
— que me orbita aonde quer que eu vá —
me confirmam:
eu não existo fora da minha dor
não penso fora dela
não habito onde ela não esteja
— cavernas minúsculas esfiapadas em salõezinhos e camarazinhas
repletinhas de animaizinhos mortinhos —
e esse eu-não-ser-sem-ela
acaba sendo o que sou
e minha ausência
falto, eu sei
mas não falto de fazer falta
falto sim de deixar a lacuna de minha presença
— como uma cavidade de dente podre na boca
ou um oco de um tronco de castanholeira —
ali, incomodando, exigindo respostas
que só uma existência contígua poderia dar
existo diferente
dor e culpa, apego e sobrecarga
me coabitam
e vivo a punição de não sofrer a mais
de não ser despedaçado ou esquálido,
ulcerado ou putrefato
sou inteiro e quebrado
e não caibo em minha própria ausência
como uma memória viva e renitente
uma dor no dente que apodreceu e caiu
ou um luto impossibilitado pelo cadáver insepulto
27/09/19
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