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domingo, 18 de julho de 2010

O OUTRO LADO DA PORTA

Nesse breve instante que ocupa o espaço entre mim e minhas memórias,
Quando estou desguarnecido das outras ocupações do dia
E ouvindo os sons distantes dos passos do outro lado da porta,
Procurei pela pessoa deixada para trás, esquecida em algum ponto do caminhar diário.

Terá se perdido? Terá parado no meio do caminho?
Cansou-se de não conseguir acompanhar
Ou se cansou de, ao acompanhar, deixar a si mesma para trás?
Por que se terá deixado tão distante, mesmo nesse instante que é tão breve entre mim e minhas memórias?

Procurei pelos pedaços, pelos cantos, por aquelas coisas velhas e empoeiradas,
Livros e pequenas estátuas, objetos testemunhas desses caminhos.
Procurei pelos antigos espaços, pelas melodias tão antigas…
E esquecidas.

Então, o mundo era grande, e as coisas, mágicas.
As samambaias suspensas, a enorme vitrola, a casinha da bomba d’água,
Os armadores de rede, o chão de tacos, o falso rodapé dos quartos,
A lembrança dos cheiros de tudo, lembrança que carregava comigo.

Procurei pelo primeiro beijo, que roubei, pelo sabor da primeira festa,
Quis ouvir de novo o grito dado quando pesquei o primeiro peixinho.
As pedras e os morros e as serras e as dunas, por que não continuaram tão altas,
E as vitórias, tão valorosas?

A primeira bicicleta. A primeira queda. A primeira dor.
Os quadros pintados com tinta guache. As máquinas fabulosas.
Onde estão todas as noites que me iniciaram na solidão aguda das horas?
Por que o sono tinha de me abandonar naquelas noites?
Por que não posso finalmente dormi-las?


Procurei pelos primeiros papéis, ah, os primeiros sonhos transcritos,
As primeiras mistificações, onde deixei?
Um dia de chuva, outro de sol, uma tarde brincando na minúscula horta
E as sombras feitas de vela na parede.

Procurei pela espera das Festas. A arrumação da casa.
O chão encerado, os móveis polidos, as portas abertas em noites de Ano.
Procurei também pelos talheres na mesa, minha cadeirinha mais alta do que todas.
Os melhores sonhos, as noites de filmes e de jogos de cartas.

Procurei por todos juntos em volta de qualquer novidade na casa.
Todos juntos na mesa, todos juntos nas viagens, todos juntos nas lembranças.
Todos juntos.
Por que não podemos todos estar de novo juntos?

Ainda me lembro, isso sem muito esforço,
De como era bom quando faltava, por algum motivo, energia elétrica.
Era tempo de velas espalhadas na casa,
E os espaços eram particularmente dotados de personalidade. Cada canto com o seu espírito.
Havia noites que eu queria que durassem pra sempre.
Noites em que, na mesa, ao redor da vela acesa, todos juntos celebrávamos sem saber
A alegria de estarmos todos juntos.

29/04/03

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