Ela procura como se houvesse perdido a si no meio de minhas coisas. Vasculha-me as gavetas. Folheia cadernos. Desencadarça meu par de botas. Seus pés não sabem o que significa proteger-se. Calça-as. Imagino-a sentindo-se pequenina, mas, num segundo olhar, já me parece perceber uma desaprovação consternada por ser o mundo um lugar tão grande. Mas, é só por um momento. Adivinho-lhe um rubor no rosto. No entanto, subitamente, não há luz para que a veja. Também subitamente, como se meus olhos houvessem piscado por dentro, vejo-a olhando-me. Não. É através de mim? Recolho-me sem graça, finjo olhos irritados e os esfrego com uma insistência convincente. É o suficiente.
Flutuando, continua a inspeção. Armário, guarda-roupas. Bolsos das camisas. São poucos. Vai ver no armário do banheiro minhas lâminas e, no espelho da portinhola meio aberta, enxerga-se. Tenta reconhecer-se, mas seu rosto não tem linhas. Um traço sequer. Seu rosto é puro e redondo, e seus olhos não refletem a luz. Em todos esses anos, nunca se percebera. Talvez se cresse irreal demais, talvez achasse vir daí o seu trânsito livre, sua intrusão.
Vou até ela. Mais alto, ponho minhas mãos sobre seus ombros e aninho-a, acalento-a. Adivinho-lhe uma tristeza. Há dores piores. Mas, como dizer isso a quem não se reconhece na ausência das próprias lágrimas?
Como dizer que, para ela, não há tempo? Que nunca houve? Que não há novidade em sua estada, que não há surpresas a celebrar? Como esperar que minha presença, que sempre estivera ali, percebendo-a, que nunca a vira mudar, que nunca a vira um dia mais velha, mas que soube todo esse tempo reservar-lhe o olhar, desviar-lhe o trajeto, arrumar-lhe cadeiras, servir-lhe merendas e abrir-lhe janelas, como esperar que essa presença lhe mostre naquele espelho de pedra o imutável?
Como dizer a ela que sou eu que a reflito?
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