Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

terça-feira, 27 de agosto de 2024

O GOSTINHO CERTEIRO DE "FARAWAY"

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar sua página de origem.)
 
    Será que é bobagem ser sentimental? Ou é o nosso sentimentalismo que se pasteurizou, que foi embalado em caixinhas de papelão vermelho e é vendido com fritas e coca? Talvez por isso mesmo, a melosidade de diuréticos hollywoodianos me caia tão mal, deixando um azedume na memória depois de o açúcar sintético abandonar as veias. Não sou ingênuo, toda arte e todo entretenimento são produtos mercantis pelo menos em algumas etapas do processo. Contudo, ainda estamos falando de arte, portanto o que está em tela deve transcender suas primeiras camadas e se ressignificar como mensagem, para muito além do beijo, do sexo, da traição, do abandono, essas coisas tão ordinárias que teimamos em querer ver copiadas em melodramas, doramas e romances cinematográficos. Faraway (Em uma ilha bem distante), filme alemão de 2023 dirigido por Vanessa Jopp, encaixa-se nessa categoria de filmes que conversam com a gente sobre essas trivialidades universais, porém adocicadas e suavizadas para nos dar um bem-estar de final feliz, de esperanças e possibilidades depois de um grande trauma. Contudo, há várias pequenas excelências que fazem esse filme se destacar na prateleira de doces em que a Netflix o colocou.
    A história se inicia na Alemanha, onde uma família de origem turca e croata se prepara para o funeral da sua matriarca. Naomi Krauss interpreta Zeynap, sua filha, que é ignorada pelo pai, pelo marido e por sua própria filha adolescente. Zeynap descobre durante os preparativos que sua mãe havia comprado em segredo uma casa na ilha em que nascera, na Croácia. Durante o enterro, seu marido, que se havia comprometido em ler a elegia, não comparece porque preferira ficar no restaurante da família, onde começava um romance com a nova chef que havia contratado recentemente, muito mais jovem que Zeynap, que tem 49 anos. Ao descobrir, ela parte em direção à casa comprada por sua mãe, que se opõe diametralmente à sua: é bucólica, rústica e ensolarada, compondo a paisagem do alto de uma colina, de frente para o mar. Daí, Zeynap passa a questionar toda a sua vida, ao ir descobrindo a história de sua mãe e reconstruindo a sua própria.

    Em qualquer página de crítica cinematográfica, é possível encontrar uma sinopse semelhante a essa, e logo vem a sensação de que, excetuando-se as locações, é uma trama como dezenas de outras que se clonam por aí. Porém, o que me fez sentir que se tratava de uma singularidade no meio da mesmice foi a carga de verdade com que Naomi Krauss diz, com sua personagem, muito mais do que um texto de autoafirmação e de resiliência. Ela impõe legitimidade às condições que lhe são impostas enquanto filha, mãe, esposa, dona de casa e mulher, a ponto de tornar críveis a história, o drama, o romance e o humor do filme. Ela consegue dar aos próprios olhares, gestos, nudez e diálogos a medida certa de intensidade para que acreditemos que ela é o que a personagem precisa que ela seja: uma pessoa real, uma mulher de 49 anos num mundo que não a leva a sério.
    Além disso, a diretora conduz o filme de modo a nos contar essas duas histórias (a do estereótipo e a da mulher real) com precisão e leveza, criando, assim, junto à cinematografia, às locações, à trilha sonora (pontualíssima), ao figurino (que, diga-se de passagem, consagram as transições de Zeynap) e à edição, um filme gostoso e quentinho, porém verdadeiro e honesto, desglamorizado, que deixa sua mensagem muito bem plantada ao final.
    A despeito de se resultar de uma fórmula mais batida do que a da massa de pão doce, Faraway se laureia por nos proporcionar uma comida que alimenta e que desperta a vontade de comer novamente daquela “novidade”, que nada mais é do que uma sobremesa deliciosa e honesta, preparada com a intenção de fazer o espírito sorrir, como deveriam ser todas. Que pena que o cinema de entretenimento tenha se esquecido de que as melhores refeições são aquelas que nos fazem sentir em casa, e não em um shopping center. Assistam acolhidos.

27/08/24

Nenhum comentário: