Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

terça-feira, 21 de maio de 2024

NÃO ESPERES DEMASIADO DO FIM DO MUNDO

Radu Jude - Nu aştepta prea mult de la sfîrşitul lumii 
(Clique na imagem para ampliá-la.)

    Termos no Brasil uma dimensão geográfica continental nos faz esquecer como deve ser a organização social de países que são menores que muitos de nossos estados. A Romênia tem 238.397km2 (menor que o Piauí), por exemplo, e é um dos países mais pobres da UE. Isso posto, parece um disparate qualquer comparação justa entre a percepção de nacionalidade deles com a nossa, ou até mesmo as percepções de lutas e conflitos de classe, pois nós, dado o nosso tamanho, temos uma quantidade muito maior de variáveis sociais e culturais, logo temos uma identidade nacional, social, política e econômica muito mais complexa que a deles, certo? Nem tanto.


(Clique na imagem para ampliá-la.)

    “Nu aştepta prea mult de la sfîrşitul lumii” (“Não esperes demasiado do fim do mundo”), uma coprodução de Romênia, Croácia, França e Luxemburgo, de 2023, acaba por tratar de temas como a crise do capitalismo e a exploração trabalhista; o conflito geracional e político interno e externo; o absurdo da internet e a sociedade do espetáculo; o racismo, o machismo e a xenofobia; e, principalmente, o abismo entre os indivíduos e a sua própria sociedade, numa alienação de sua cidadania. O filme é uma comédia irônica e sarcástica, porém de um humor muito mais reflexivo que risível. O diretor e roteirista Radu Jude conduz a narrativa num estilo quase documental, em que seguimos durante as suas 2h43min as ações de Angela (Ilinca Manolache), durante quase dois dias no ano de 2023, dirigindo pelas ruas de Bucareste. Ela é assistente de uma produtora de filmes e está encarregada de entrevistar vítimas de acidentes de trabalho para um documentário sobre segurança do trabalho bancado pela própria empresa em que estas trabalham e a qual, por exploração e negligências, foi a responsável por eles. Ela própria é também explorada, tendo de trabalhar por até 20 horas diárias como motorista e faz-tudo da produtora. Durante essa rotina, Angela grava vídeos para o TikTok em que o personagem criado por ela, Bobiţă (pronuncia-se “Bobitsa”), faz críticas em tom racista, misógino e xenofóbico a fatos e pessoas relevantes e irrelevantes, todas elas hiperbolizadas ou, como ela diz, como “uma caricatura exagerada” da realidade.


(Clique nas imagens para ampliá-las.)

    As críticas vão desde a morte da Rainha da Inglaterra, o neonazismo austríaco e ucraniano e o ex-ditador Nicolae Ceaușescu à venda de livros nos sinais e ao caos urbano e à superficialidade da sociedade contemporânea. Paralelo a isso, o filme mostra a trajetória de outra Angela (Dorina Lazār), no ano de 1990, durante os mesmos quase dois dias, nos mesmos lugares onde transita a primeira. Ela é taxista numa Romênia mergulhada no atraso e, nesse período, conhece o seu futuro marido e pai de Ovidiu, que acabaria por ser a vítima escolhida para dar o seu depoimento no documentário de 2023. Nesse contexto, as vidas das duas Angelas se cruzam e o filme nos mostra que existe mais em comum entre elas do que a superfície das mudanças sociais, políticas e tecnológicas poderia permitir. Aqui, dois adendos: primeiro, Radu Jude mesclou fragmentos de um filme de 1981 chamado Angela merge mai departe (Angela vai mais longe, em tradução livre), com Dorina Lazār (então com 41 anos), dirigido por Lucian Bratu e roteirizado por Eva Sârbu, cuja história em flashback é o ponto paralelo ao qual se dá a principal; e segundo, ele manteve a mesma atriz na narrativa de 2023, agora com 83 anos, dando sequência ao drama de 81.

(Clique na imagem para ampliá-la.)

    O diretor conta uma história numa cadência que pode (e vai) entediar bastante o espectador que espera um filme comum, coisa que esse filme não é nem de longe, apesar de contar histórias ordinárias de pessoas ordinárias que poderiam acontecer em quase qualquer capital do mundo. Bobiţă é criado com filtros masculinos caricaturescos do TikTok, e suas interferências na narrativa se assemelham bastante às da figura arquetípica do pícaro, da literatura espanhola, ou à do parvo, no Trovadorismo, ou seja, são intervenções que, além de pontuá-la com humor ácido, marcam o ritmo da própria narrativa. Contudo, o ordinário da vida das Angelas é imenso. Cria-se uma identificação com a nossa própria vida ordinária a ponto de dizermos, em alguns pontos, “sim, é assim mesmo”, ou “olha, eu já passei por isso, do mesmo jeito”. As Angelas são pessoas comuns de vidas comuns, sem nada de especial nelas que valha a pena ser contado. Entretanto, o diretor/roteirista nos mostra que é nesse ordinário, nessa malha de fios todos iguais, de um tecido cinza sem estampas (a história da Angela de 2023 é narrada em P&B, a de Bobiţă é em cores de baixa resolução, e a da Angela de 1990, com uma paleta que nos remete aos nossos anos 1970), que se dá a grande profundidade dos temas desse filme: a inevitabilidade do fim da sociedade causado por quem tem poder sobre ela; a inescapabilidade de um indivíduo dentro de um “rebanho”, por mais esclarecido que esse indivíduo seja; e a perpetuação do ciclo que culmina nesse fim.

(Clique na imagem para ampliá-la.)

    “Não esperes demasiado do fim do mundo” é uma obra-prima com um corpo moderno, com cicatrizes e úlceras modernas, que fede modernamente, mas tem um DNA atemporal e comum a todos nós. Um sistema massacrante, uma estrutura de preconceitos e uma angústia onipresente podem ser, como ele nos mostra, pontos semelhantes entre povos que compartilham muito mais que uma origem linguística comum. Não somos os mesmos, não partilhamos as mesmas culturas, não sofremos as mesmas dores, mas, ao mesmo tempo, somos, partilhamos e sofremos. Um pobre é um pobre, e um poderoso é um poderoso em Teresina, Bucareste ou Fortaleza. Essa obra transita pelos paradoxos e semelhanças entre culturas da mesma forma como as Angelas pelas ruas de Bucareste: uma, com seu táxi; outra, com sua minivan; ambas, exaustas e maquinais na rotina de serem mulheres numa máquina de moer gente que é o capitalismo patriarcal. É genial, sendo ordinário; é atual, sendo antiquado; somos nós, sendo elas. Assistam descansados.

(Clique na imagem para ampliá-la.)
21/05/24

Nenhum comentário: