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terça-feira, 26 de abril de 2011

RAPACE


Não lhe parecia fácil estar ali, cercada por amigos. Parecia haver neles outros rostos, outros humores. João, que era o mais próximo, não tinha o rosto que tanto trouxera entre as mãos nem as mãos que lhe haviam mapeado o corpo inteiro. Não reconhecia o bandeirante de sua própria floresta, o que lhe capturara a onça e extraíra-lhe o leite e o coração, que, dissera ele, comera inteiro, sem mastigar, para tornar-se ele próprio a fera daquela mata. Riu-se intimamente da resposta que não lhe dera: “trago comigo animais muito maiores…”.
Da onça mesmo, trazia o olhar, mas seu corpo tinha penas, asas, plumagens negras como suas pupilas. De cima, observava João, o seu coelho, a sua presa de rapace, a sua caça. Dominara sempre o ar. Desde criança, voava sobre os homens, sobre as casas, pousava nos telhados mais incólumes. Quando viajava, punha soltos os cabelos para fora da janela, a testa morena silvando o vento quente do dia. Sempre viajava de dia. Sempre se drogava de dia. Embebedava-se cedo, quando os bares abriam. Não era criatura da noite. Aves não caçam à noite, somente as corujas, e não era uma coruja. Era uma onça que voava.
— …não sei, não era ela, era, Cristina?
— Sei lá, parecia mais velha.
— Mas, faz tempo que não vejo. Podia ser. Também, eu ‘tava chapado.
Ela também estava. A conversa a fisgara. Mesmo drogada, não se entorpecia. Era selvagem demais. Mesmo João, que era o mais parelho ao seu comportamento, não tinha a sua matreirice. João era como um cavalo, forte, vigoroso, passarinheiro, não aceitava brida, mas era um cavalo, servia para que o montassem. Só ela o cavalgava. Saciava-se fácil, mas não apeava. Sentia o seu homem, sua montaria, entre as pernas leves durante horas e figurava-se uma harpia com um cordeiro entre as garras. Era como se sentia ao final.
Saltou novamente do telhado onde a pousara o diálogo. Observava novamente as criaturas, preás, borregos, cobras, novilhos mansos. Não rastejaria jamais, nem teria cascos! Continuava estranhando aqueles ares, apesar de tudo. Que cidade era aquela, com árvores que não conhecia? Lembrara-se das árvores de Niebla, pobres árvores insones, domesticadas, que nunca houveram conhecido uma única noite negra na vida. Árvores presas ao cimento das alamedas e pelos fios elétricos dos postes, como jaulas, como jaulas, meu Deus. Admitia Deus. Ele era um pássaro maior que ela, mas era um pássaro como ela. Também rapinava homens. Só se perguntava se, como ela, Ele os comia. Olhava as árvores e os homens e discernia formas e tamanhos, mas não importâncias. Eram coisas para comer e abrigar-se.
Súbito, uma pressão forçou-lhe as coxas, e sentiu um coração de onça batendo por trás de uma pele que se esfregava conhecida sobre sua plumagem. Cruzou as pernas em seu tordilho como um vento envolve um brigue, e fez-se ao mar onde aterrissara, cama de ondas xadrez onde se entendiam sempre depois do bar. Não podia voar, mas não queria: estava saciando-se.
Ao final, era noite. Incomodava-lhe a noite chegar e pegar-lhe de frio a pele. Olhou o quarto, o homem, a janela, a luz de cabeceira, os elementos estranhos daquele habitat. Eram estranhos à sua natureza. Caminhou alguns passos, sentiu precisar aninhar-se, olhou em torno, olhou João dormitando, olhou a cama, a roupa que lhe clamava o corpo, sentiu-se humana, sentiu-se mulher. Mulher! Como Cristina, como Marília! Odiava a noite. Vestiu-se. Correu as escadas, elevador é uma gaiola, é uma jaula. Não era coruja para saltar da janela àquelas horas. Vadiou às ruas, sentiu-se puta, chorou uma lágrima que jamais admitiria, teve de rastejar, teve de se elevar em cascos, em patas, teve de agradecer às árvores por telharem seu corpo frágil do céu. Teve de fazer o que lhe era o pior: reconhecer-se. Achou um lugar com um banheiro, refugou, cedeu, entrou, vomitou a alma, as penas, o ar, os olhos de onça.
Olhou os garçons como uma criança perdida olha seguranças de shopping. Dentro de si, uma floresta dormente, sem cavalos, sem animais, sem bandeirantes: somente um rio cortava em margens os dois lados negros de uma flora insípida, inválida, amofinada, domesticada como as árvores de Unamuno, que não sabem da noite mais que uma minhoca sabe da terra que escava, onde se esconde, por que vive e em que se enterra cada vez mais, sem direção, sem origem e sem fim.

26/04/11

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