Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

NÃO QUIS COISAR… OU “FIFTY SHADES OF VANITY”

O tabloide britânico Daily Mail publicou hoje, dia 14 de novembro, que uma senhora londrina de 41 anos, empresária bem-sucedida (tem renda anual de £400,000), decide pedir divórcio por seu marido não corresponder às suas fantasias sexuais liberadas depois da leitura do best-seller Cinquenta tons de cinza, de Erika Leonard James, publicado no ano passado (leia o artigo em inglês aqui). Não o li. Não por ideologia (ou falta dela) ou coisa que o valha, mas por minha preguiça literária, mazela que admito envergonhadamente. Tenho preguiça de ler como tenho preguiça de tantas outras coisas que me são deliciosas, como pescar, subir serra, tomar banho de chuva. Talvez, tivesse preguiça de pensar em fazer sexo como essa senhora pensou. O seu infeliz (será?) marido não quis praticar com ela o sadomasoquismo e o bondage, o que se tornou o motivo do litígio. Porém, não tive preguiça de pensar nessas pobres criaturas. Uma, pega de surpresa pelo desejo inédito da outra, a qual desenterrou uma fêmea inventada das páginas de uma obra comercial. E o amor, minha gente?
Não quis coisar… Agora, sem brincadeiras! Apesar de não podermos conjeturar sobre o relacionamento dessa égua com esse bocó, esse é um fato sintomático de uma constante nos relacionamentos contemporâneos, que é o vínculo da sua existência à satisfação egoísta dos membros. Talvez seja a pior herança do hedonismo da minha geração (os nascidos ou adolescidos entre 1970-80): a defesa intolerante e acéfala da “bandeira do eu”.
Quando vamos parar com essa sala de espelhos? Viver, meus caros, só é bom quando usamos o prefixo alomorfe “con”. Entretanto, o sexo freudiano, que tanto povoou a mente dos teóricos em educação, deu cria: o sexo cinematográfico (ou, no caso, o literário).
Não basta amar. Tem de amar e foder como um sátiro, uma ninfa ou (o ápice da competência!) os dois ao mesmo tempo. Às vezes, amar é até mesmo descartável. Amar incomoda, gera expectativas, rugas, refluxos. Ah, quem nos dera, apesar dos joanetes entalados em scarpins e cromos alemães, esses amores italianos ou argentinos, macarronados num tango e saboreados em cafés franceses. Estes, tudo bem! O que incomoda mesmo é o amor na pia de lavar louça, o amor posto à prova no espaço enorme entre as presenças e, nelas, no suportar o ronco, o peido, a TPM, as acnes, os fios da barba mal varridos. Quem há de se comprometer em amar desconsiderando a si mesmo? Quem haveria de amar alguém que requeresse o supremo esforço da compreensão abnegada em tal parceria?
Imaginemos um caso não totalmente ficcional. Ela se apaixona, depois ama. Ele era tudo, tão bonito, tão macho, tão parecido ao seu pai… Supriu-lhe tudo: o ombro, o peito, o pênis, os ouvidos e os lábios eram seus. Entregou-se, lavou-lhe as cuecas, preparou-lhe lambedores nas gripes, amou-o calma e febrilmente. Só não contava com o mundo inteiro lhe zumbindo nos ouvidos como ele deveria ser: um deus grego de boca e pênis invencíveis, de corpo forte e acrobático, de olhar cafajeste e canino. Um desses homens de propaganda de uísque. Com o tempo, esse novo homem que ele, covardemente, negava-se a ser aparecia-lhe nos lugares mais inóspitos, mais inexplorados: as suas expectativas. Sua condição de fêmea foi finalmente despertada! Mas, como vivê-la, com esse homem arremedado que se tem em casa? Ela merecia o homem da propaganda do carro utilitário-esportivo, o homem que escala a montanha e cheira a amêndoas e loção pós-barba, aquele que acredita piamente, a despeito de sua própria magnífica superioridade física, ser ela a encarnação de Diana, a caçadora, a amazona cuja função única é escravizá-lo e devorá-lo tiranamente, coisa pela qual ele espera desde que se apaixonara por ela à primeira vista.
O que faz seu pobre homem? Lê também o livro e se redime, entra no bisturi e na academia, fica magicamente mais jovem, implanta cabelos, compra prótese peniana, na impossibilidade de ter sua vergonhosa humanidade genital convertida no deus Falo que ela merece?
Há uma infinidade de crônicas a respeito de mulheres objetificadas por seus homens, e outras tantas sobre as que sofrem o diabo em bullyings pela inadequação ao modelo midiático. Devem estar, em sua maioria, corretíssimas. Historicamente, não há nada mais hediondo que o sofrimento imposto às mulheres pela dominação masculina. Porém, contemporaneamente, estamos abrindo os olhos para o outro viés: essa objetificação não seria para os dois gêneros ou, pelo menos, não o tem sido?
Não vou entrar aqui no labirinto das causas. O comércio de imagens, o modismo, o conceito grego da coisa, são tudo conjeturas válidas. Prefiro a isso falar da mais triste das consequências: a morte do amor. Como se espera que dois egoístas vivam juntos? Como se satisfarão? Onde estará a alegria da entrega sem motivos que não sejam a própria entrega e o que esta causa em quem recebe a doação?
Fico feliz que se esteja lendo tanto. No Brasil, certamente, nunca se leu tanto. Entendo a leitura clariceanamente: a deflagradora da “felicidade clandestina”, embora eu ache que não deva ser tão clandestina assim. Louvo, ainda que carrancudo, meus alunos virarem devoradores de best-sellers, pois sei que não existe teletransporte para a intelectualização — hão de se respeitar os degraus. Contudo, temo muito pela desorientação tão característica deles e deste início de século, de uma maneira geral. Será que levamos mesmo tanto tempo para adolescer? A senhora litigante do divórcio tem 41 anos, é banqueira, deve ter lido e vivido o suficiente para entender os limites da ficção. Custava crescer?

14/11/12

Nenhum comentário: