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quarta-feira, 30 de junho de 2010

SONETO À QUE É INCONTÍVEL

(a Lidiane Lima)

Não há guardar em que se guarde o amor.
Ele é vivo e largo mais que a vida,
Pois, quando chega, já é só partida,
Mas partir não vai, sem no viver se pôr.

Viver que se faz, no teu, a se compor:
Como o amor que se esvai da mão perdida
Que, por retê-lo, espasma, espavorida,
Sem ver que, em se perder, já é só amor.

Assim tu és, sólida evanescência,
Que vive o dar-se, mas não o se entregar,
E, em contraste, tocas e é intangível.

Porque em ti, o amor é o verdadeiro amar,
Pois não se pode ter o incontível,
Como, do amor, raptar a extrema essência.

01/05/06

Quando escrevi esse texto, eu tinha um projeto de elaborar um livro de sonetos em que cada um fosse dedicado a um dos meus melhores amigos. O projeto ainda existe, ainda que engavetado. Um dia, ele gritará em mim a sua conclusão.
Esse soneto, eu o fiz àquela de quem costumo dizer ser a única pessoa no mundo todo que sabe abraçar-me "direito". Porque quando ela o faz, não é com os braços, não é com o corpo nem com a amizade. É com a alma inteira, que a minha embraça e veste, e, por ela, é também vestida.
Nenhuma declaração de amor é o suficiente pra expressar essa identidade, esse olhar que é o meu dentro do meu, dentro do dela, essa compreensão, essa valorização.
Ela é uma flor que eu vi crescer e desabrochar, petalando-se e perfumando a si e, graças a Deus, aos que têm sensibilidade às flores (Deus sabe que há flores que não se dão).
Há muito, eu procurava um substantivo que pudesse descrevê-la como eu a via: um pulso de luz, uma intensidade intermitente, um iluminar e escurecer, um dia de sol e uma noite negra alternada, crescente e eternamente.
Parece que ela o achou antes de mim, e perfeitamente: Lampejos
Pulse, minha linda. Encandeie!

quinta-feira, 10 de junho de 2010

MOTO-CONTÍNUO

E assim, veio a distância.
Ora o tempo se estria ao tato,
e o espaço se sente papilarmente.
Os pés percebem o que andaram
e param, cheirando o chão,
lambendo o gosto terrenal novo,
os dedos mastigando os grãos
que sequer prenunciam:
o chão novo não prediz nada.
Atrás, na memória esburacada,
as notas das pegadas se deixaram impressas
na partitura da estrada.
Só na morte, pode-se ler a canção.
Do alto.
"Quando comecei a cantar?", perguntam-se os pés.
"Quem me ouvira? Eu, não."
Os calcanhares secos e os tornozelos inchados,
os dedos tortos, as unhas deformadas e negras de fungos,
a estrada por dentro,
o caminho sulcado nos ossos
como na pedra o açoite do mar,
o couro lanhado pelo gume do tempo.
E a distância tão clara, tão certa,
tão havida quanto percebida
como as gretas de sol na pele do rosto.
O corpo, parado, sente o hálito esquerdo do vento:
um pilar separando as onipresenças
do sol e da estrada.
Um moto-contínuo. Um pêndulo perfeito.
Os pés se perguntam:
"Ainda soo, mesmo parado?
É isto um longo agudo?"
A estrada nova não parece nova,
assim mostra a consciência do caminhar.
Dentro, na alma pergaminhada,
a máquina engendra os arcos, as cordas,
os sopros e as baquetas,
como um mecanismo de corda,
confirmando o automatismo da música.
Os pés lhe são moucos.
Imperceptivelmente, a partitura flui,
e gretam-se novas notas,
os sentidos se desalinham,
o engenho range.
Os pés, doloridos e inconscientes,
voltam à composição que só se ouvirá
quando forem asas.

10/06/10