Número de sílabas (desde 11/2008)

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quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O PARA-SEMPRE DO EXTRAORDINÁRIO

Cássia Eller - Espírito do som, 2021 (com alterações.)
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    Depois de tudo, resta a quase atingida esperança: o som há de ser a sublimação do extraordinário. O som, não a voz. Não o canto, o sussurro, a gargalhada. O som. O espírito, se fosse mensurado pela Física, seria finalmente revelado em sua consistência imaterial: ondas sonoras finalmente livres de sua fonte de emissão e, a despeito da eventual inexistência dessa origem, eternas como almas desprendidas do corpo.
    A ideia própria do som, o pensamento amorfo que antecede a palavra, presente na memória de uma voz ou de uma canção que persiste mesmo após a amnésia do que foram seus corpos — os verbos, as frases, os textos —: isso é a verdadeira essência. Lembro minha mãe cantando, mas sei lá qual música, sei lá os versos, a letra, nada!, só a voz, pura, cristalina. Da voz de meu pai, idem: um trovão confortável que nos guarnecia e assegurava a todos nós a firmeza de uma árvore. Combinados, os dois eram uma espécie de deus vibrante e primordial. Mas, nada de palavras; o som, apenas. Esse é o para-sempre do extraordinário.
    Ao longo da vida, tão barulhenta, tão ruidosa, os sons podem acabar se confundindo no caos — um Cronos devorando seus filhos: vão-se, um a um, os espíritos do maravilhoso sendo absorvidos pelas máquinas e pelos demônios que se apossam das pessoas e das frases. A indústria do mundo e suas engrenagens só são possíveis na insensibilidade da surdez. É necessário estrugir as almas dos homens para que se contentem com suas funções, para que o estrupício do mundo ocupe os ocos onde se calaram suas vozes, ecoando como pianolas autômatas compassando o dia a dia marcial do trabalho, da funcionalidade, da produtividade. Surdos a nós próprios, vagamos pragmaticamente, dançando no tempo marcado pelo chicote e pelo metrônomo.
    Há que se guardar o “espírito do som”, como diz a canção de Péricles Cavalcanti e Chico Evangelista, imortalizada pela Cássia Eller. Ocorre muito de imagens acústicas de uma canção se repetirem e repetirem no pensamento, enquanto realizo as tarefas diárias. Afinal, “o espírito do som brinca o tempo todo e é muito bom e feliz”, e a criança que eu fui é que a canta e depois escolhe outra, e outra… Ela não se entrega. Ela não me permite a rendição. Ela é que me salva os ouvidos do zumbido industrial do mundo e me permite a poesia.
    De som em som, vamos nos resgatando. O nosso destino é um aboio, solto e livre, condutor de nós mesmos. Uma sinfonia sertaneja, feita de rios em meio à caatinga. Há de ser.

04/12/25

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

VISITA ANUNCIADA

Vem, chega mais perto.
Faze-te de ar e me falta,
que já não fazes mais falta.

És familiar
como esse eu
que transita impune pelos espelhos.

Porém, é só o que te imponho:
ao contrário de mim,
não excedas a tua forma,

pois, ao que transbordo e sobejo,
essencias-te;
ao que me fragmento e abandono,
eternizas-te;
ao que me vou,
aportas.

Não te incomodes:
deixa tudo o que não és sobre o aparador
e vem,
pés descalços,
mãos vazias,
ventre oco.

Guarda aí o espaço que me reservaste.

Vê, eu te trouxe pão e tapioca
de longe, de quando éramos todos
filhos de nossos pais.
Tenho aqui um café e um punhado de estórias
que bem dão uma constelação a mais
em tua Noite,

essa Noite enorme,
mais clara que o dia,
que, há tanto, me anunciaste.

Que não fales,
que não rias,
que não digas os sabores de tua vinda,
não me importo.

Hoje eu escolho a prosa e o sorriso,
o monólogo suave e casual
diverso de tudo,
feito apenas de palavras inéditas
de uma língua recém-nascida.

Senta-te ao meu lado esquerdo,
que é onde fica minha saudade
― tão antiga e exata como tu —,
e deixa que ela também te fale um pouco.

Já não desespera;
está em paz.

Aqui, fico eu assim, em portas de domingo:
um riachinho reabrindo
o velho rio de minha vida.

Só para ti.

16-19/11/25

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

17 ANOS


    No dia de hoje, há 17 anos, fiz a primeira postagem do blogue. Escrever, até então, era uma retroalimentação afetiva e um eterno encher de gavetas reais e virtuais. Depois de assistir a uma palestra da escritora Ana Miranda com minha amiga Carmélia Aragão, na qual a autora falou sobre a importância dos silêncios da narrativa, nos quais o leitor tinha função criativa, decidi dar a cara a tapa (ou botar a cara no sol, o que, em Fortaleza, dá no mesmo) e me expor à leitura alheia. Desde então, eu me ocupo em imaginar quantas coautorias consigo provocar com esse compartilhamento de mim mesmo.
    Há 17 anos, resolvi começar a mostrar que sou, desde menino, outros, vários, múltiplos, infinitos, até quando durar.
    Obrigado a todo mundo pela complementação do meu silêncio e por tantos outros silêncios de que se faz a poesia.

06/11/25

terça-feira, 4 de novembro de 2025

CAMPO BRANCO

Foto: Gerardo Filho
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é preciso cuidar do invisível
do insensível aos amigos
à família
aos deuses

é preciso guardar o ofensivo
ainda que a ele infenso
mesmo que dele enfermo
que por ele constrangido
que a ele adverso

pois é no diverso
no contrapeso do que é útil
que sustenta o nosso frágil relicário
e resiste a sempre fina luz
da nossa impossível dança

que rejeita a festa
que enfeita a vida
no vento das solidões

é preciso deitar na água
é preciso desaprender a andar
é preciso captar a essência
anterior a si
mas que ainda vibra no gesto sem cálculo
na desordem suave
de um banho de mar

é preciso cuidar, enfim, do ignorado
mantê-lo dançando em salões vazios
sob a chuva fina por detrás dos olhos
por detrás da alma
nos campos brancos de nosso mais íntimo
sertão

04/11/25

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A TRISTE PAISAGEM DA JANELA QUE SE DESPEDE DE LÔ

Lô Borges (detalhe ampliado da contracapa de Clube da Esquina - foto de Cafi)
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    Já desisti de tentar diminuir o abismo geracional entre mim e quem tem menos de 25 anos, quase a metade da minha idade. Pensando bem, a que sorte (ou azar) de coisas o mundo foi sujeito no último quarto de século? Toda a cultura pop e boa parte da economia e da política (até da religião) passou por conversões, adaptações ou apagamentos que as tornaram inindentificáveis pra quem já tinha 25 anos quando o milênio virou. Isso, sem falar na revolução tecnológica. Vi a morte do K-7, do LP, do VHS, o nascimento da internet, do CD, da MP3, do DVD e do Blu-Ray, suas respectivas mortes, sua tímida ressurreição e, agora, a ascensão do streaming, certezas e dúvidas que nasceram, morreram e reencarnaram.

Fita Cassete K7 Basf 90 Lh Extra I Estereo Cassete Lh-ei Ec
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    Quando nasci, os artistas que me formariam já eram grandes ou estavam confirmando seu estrelato, e eu que lutasse (expressão millennial) pra correr atrás (expressão pré-hippie) da minha sintonia cultural. Minha própria cultura, a nordestina, ainda tinha uma passada orgânica de bastão (mix de expressão pré-boomer com da “geração Z”), dado o meu contexto socioeconômico. Ouvir Seu Luiz, Pessoal do Ceará, Fagner e o cânone do forró, do brega e da seresta era natural, tocavam no Roadstar da Belina do meu pai. A MPB também tinha espaço no radinho da cozinha, além das baladas românticas e, é claro, do rock nacional e dos gêneros gringos. Ainda não havia o agropop, o piseiro, o narcofunk nem os neopentecostais, então as FM eram mais ou menos democráticas, rolava de tudo, bastava mudar a estação.
    Passava horas da minha adolescência esperando o programa do Paulinho Leme ou o do Nelson Augusto, com a Basf 90 semivirgem a postos pra capturar, com sorte, a fina flor musical do meu tempo, coisa incompreensível pra esta geração atual, que nem sei mais como foi rotulada pelos vendedores de vape e Smirnoff Ice. Hoje, o mercado conseguiu virtualizar quase que completamente as mídias, tornando o acesso ao audiovisual portátil possível praticamente apenas mediante assinaturas de streaming. Sem o Spotify, fica muito difícil pra um adolescente de hoje saber quem foi Lô Borges, que, como se deveria saber amplamente, fez, em parceria com Milton Nascimento, um dos melhores discos de todos os tempos, o álbum duplo (duro, explicar um elepê duplo a um garoto de 13 anos de hoje) Clube da Esquina.

Lô Borges
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    Foi mais ou menos por aí (meus 13 anos) que tive contato com o Clube, muito pobremente, pois não era um disco tão “comercial” assim. Lô Borges, mesmo, só fui conhecer uns dez anos mais tarde, quando, já com a internet, pude ouvir as suas coisas no YouTube. E, meu Deus!, que música era aquela! Uma genialidade adolescente, extremamente precoce e rebelde, desenquadrada dos padrões comerciais da indústria, original, mas reverente ao pop inglês, brasileira, mineira, íntima.

O "Disco do Tênis" - Lô Borges, 1972 (foto de Cafi)
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    Nessa última semana passada, vinha acompanhando pelo Facebook e pelo Instagram as notícias de sua internação. Seus 73 anos (nem parecia!) não suportaram uma intoxicação de medicamentos, o que o levou ao coma, a uma traqueostomia e ao subsequente falecimento hoje, segunda, dia 03, logo após o Dia de Finados. A notícia veio perdendo o peso nesses dias. Sua idade — a idade daqueles de sua geração, o sedimento e o pináculo culturais musicais do Brasil — não nos deixaria com muita esperança de uma recuperação milagrosa em casos mais sinistros.
    Seu parceiro, Milton, está com 83 anos, já fez sua anunciada última turnê, gravou com amigos e medalhões, honrou sua velhice de preto-velho que se tornará orixá. Recentemente, também, divulgou-se seu quadro de demência. Um deus que vai se esquecer de quem é. Por mais amor e esperança que eu tenha, sei que, eventualmente, ele se tornará apenas o ícone, a referência que não pode mais criar novas próprias referências. Assim foi com Aldir Blanc, Dominguinhos, Hermeto Pascoal, recentemente.

Lô Borges
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Milton Nascimento
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    Foram pessoas como Lô, que eu, nascido em 74, tive de garimpar pra encontrar como joias prontas, ornando palácios musicais que me foram quase achados arqueológicos dentro de meu próprio tempo. Essa mineração eu fazia em sebos de vinil, de livros, na FM Universitária. Uma vez que tinha as gemas em mãos, deitava no chão frio do meu quarto e deixava o 3-em-1 da CCE (uma das primeiras compras de primeiros salários) fazer o seu trabalho: transformar-me; evoluir-me. E sim, eu já tinha consciência de que aquilo era um fogo de Prometeu. Talvez eu seja de uma geração que, por ser a última formada pelo rádio, tinha consciência do que um Trem azul, um Girassol da cor do seu cabelo e uma Paisagem da janela podiam fazer por mim. Lô, Milton, Beto Guedes, Fernando Brant, Márcio Borges! Como fui privilegiado de ter de ter precisado cavar fundo entre Xuxas e Betos Barbosas pra encontrá-los! Disse isto ao meu saudoso amigo Aloísio Menor, numa das últimas ocasiões em que falávamos sobre música, e era só do que falávamos: a raridade não está na baixa tiragem dos discos, mas sim na nossa dificuldade de tê-los, e, por isso mesmo, nós os valorizamos.

Milton Nascimento e Lô Borges - Clube da Esquina, 1972
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    Com a internet, claro, isso não foi mais tão difícil assim. A última música muito difícil de ser encontrada foi Gabriel, de Teca Calazans. Minha última raridade. Desde lá, há uns quinze anos, tem sido relativamente fácil encontrar na web discos como Via Láctea (1979) e Os Borges (1980), ambos obras-primas de Lô, e olha que eu não assino nenhum streaming.
    Como comecei este texto afirmando, já desisti de me colocar no lugar de um adolescente atual, ainda que um como eu, sedento de arte. O máximo que me disponho a fazer (desconfio que é o melhor que consigo) é tentar imaginar a mim mesmo hoje, com minha ignorância de 13 anos, criado por uma família também contemporânea, ainda que a mesma. Perdoem-me a crueldade da nostalgia, mas só consigo sentir piedade e uma certa desesperança. Talvez, um certo pavor, também. Provavelmente, eu jamais viesse a saber quem são Roberto Ribeiro, Altemar Dutra, Dolores Duran, que minha mãe tanto adorava. O próprio Milton talvez só me fosse conhecido pelo seu dueto com Criolo, este, conhecido ocasionalmente apenas por ser contemporâneo. Ainda assim, só pelo YouTube, e olhe lá! Imaginem o Lô.
    São tristes tempos para se morrer. Mesmo homenageado postumamente como merecido, o grande artista só vai encontrar sentimentos legítimos entre aqueles, talvez, que tenham até seus 35 anos. Pra quem fica, como traduziu Milton em Canção da América, originalmente, de Ricky Fataar, só resta alar o pensamento na lembrança cantada por quem partiu. Mas, que asas tem quem tem seus 13 anos num mundo artisticamente tão raso, construído mormente ao consumo da música como fast-food e à inanição reflexiva sobre si mesmo e estes tempos? Que lugar tem a janela lateral do quarto de dormir de Lô na vida de um adolescente que, musicalmente, é uma pessoa em situação de rua?
    Lembrou-me agorinha minha amiga maior, Carmélia Aragão: “se eu morrer, não chore não, é só poesia”, escreveu Márcio, seu irmão, pra que Lô nos encantasse. Hoje, o luto é um campo de girassóis da cor de todos os nossos cabelos, Carmélie.

Milton Nascimento com camiseta da Chico Rei
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03/11/25

domingo, 2 de novembro de 2025

PEGA

Luciana Brito Araújo - Vaqueiro na pega do boi da caatinga
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ah, se fosse fácil
marcar com o ferro da luta
no couro da alma
o anagrama elucidado,
o fim do mistério do corpo

corpo vazio,
vagando sem dono no meio do mundo

rês indolente,
carne, sangue, osso e víscera

boi arruado,
bezerro de ouro desadorado,
sem cura no rastro,
sem sol nem malhada,
sem aboio,
sem abate

rompe o espírito,
esse cavaleiro encourado,
a reduzir sua criação
mor de que a noite, que guarda a onça,
esqueça na tarde a queda

e fique de longe a aurora assistindo
a esse encontro tardão,
ainda que certeiro,
que nasce em seu encalço.

02/11/25

CONSISTÊNCIA


há mais de mim nas coisas do que em mim.
nos lugares, no cheiro do vento.
onde dormi, mais que o sulco temporário de meu corpo,
que a fina camada de gordura e pele,
há o sonho e o assombro.
lá ficaram.

mas, quando ali retorno o olhar de dentro,
vejo que mais estou do que pareço.
vejo que a porta aberta que esqueci sem chave
gravou de mim uma partida que é mais
do que fui quando cheguei.

há mais de mim mesmo onde só estive em pensamento.
nas ausências, nas impermanências, ali estou, vigilante,
marcando a estada,
prenhez e prole, eu mesmo, onipresente, populoso,
territorial.

só assim
para aguentar este deixar de ser
constante
em que me perco, hora a hora,
sem nunca acabar de ser inteiro.

sou porque não sou;
estou porque, em outros lugares,
me abandonei.

minha âncora é o mar.

02/11/25

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

SUVENIR

 
Chaveiros que comprei em Recife há uns 25 anos.
 
espalhei pela casa suvenires
frutos há muito arrancados
de pequenas felicidades

pistas, miolinhos de pão
marcando o caminho
sem volta

minhas pedrinhas miudinhas
me esqueceram de Aruanda
me esqueceram nos vasos de plantas
nos fundos dos bolsos
no fundo do mar

seja eu também, talvez
uma pedrinha miudinha
que nunca viu baladeira
nunca matou passarinho
nunca correu sobre as águas

na mão abandonada do menino
que me colheu como suvenir
para não crescer só

e que não cansa de olhar o mar

31/10/25

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

MINHA RUA

 
Placa indicadora de minha rua, que fora afixada na fachada de minha casa nos anos de 1970, retirada posteriormente devido a uma reforma no anos de 1990 e, atualmente, peça de decoração de minha sala (foto do autor).
 
sinto falta da minha rua de calçamento irregular,
que me trazia a casa
e era o meu lugar entre o meu mar e o meu sertão

hoje, asfaltou-se
como um rio assoreado,
onde o tráfego esmaga
o peixe em que a evolução errou

nem um centímetro a mais foi posto,
mas uma distância definitiva, invencível,
ilhou cada um de nós,
náufragos, aratus refugiados
em buracos na areia

perderam a graça as chuvas nas biqueiras
e as guerras de jambo
entre nós, os ribeirinhos acanalhados

a guerra de hoje é outra:
é entre o prédio e a gente;
é entre as facções e a gente;
é entre a polícia e a gente;
é entre a gente

o tempo passou pela minha rua em paradas militares,
em procissões de loucos,
em desfiles de Santos Reis

mas, principalmente, o tempo
arrastou sob seu ventre
nossas pegadas, nossa história,
nossas árvores,
como fazem máquinas compactadoras
terraplanando o futuro

ainda teimo em curiar
quem, dos que ficaram, ou suas crias,
que riscará a pedras de cal
o próprio nome na própria calçada
da própria casa,

mas, sem sucesso

não há mais basculhos
nem de muros nem de gentes
que se escrevam no chão
como quando a rua era uma tribo
e nela vadiavam selvagemente
os sonhos de quem nunca fomos

24/10/25

sábado, 17 de maio de 2025

SEIXO ACIDENTAL

Pedra de quartzo rosa coletada de um canteiro central de Fortaleza.
(Clique na imagem para ampliá-la.)

não é meu o corpo
de que sou sombra,

tampouco o chão
onde me deito
o é

esta tarde, este sol
e este equador evaporante
me carregam pelas calçadas,
por entre os carros
e por debaixo das portas:

folha e pó,
que o vento esquece por aí
em algum de seus quarenta graus

fico, me greto
nas falhas dos rodapés

me varrem,
e assim faço parte
das casas que visito

o que é meu
são o caminho para,
o espaço entre,
a divisão de
e a distância a

isso de ter de ser
é como dar nome a bicho,
a planta, a vento:
desculpa a vida

aceito o acidente de ser
apesar do corpo,
apesar das roupas
e dos bons-dias

e, apesar de todo o adeus
que me acompanha,
saúdo desconhecidos,
trabalho a palavra,
frequento hostilidades,
cato seixos de quartzo e mica,
búzios e refugos abandonados
por mudanças alheias
e me muno de luz e som
por toda parte
todo o tempo

ser por um acaso
e, por várias vezes,
deixar de ser
acabam por doer intenso,
mais que viver
propositalmente,

porém é daí que tiro
voz, palavra e silêncio,

e todo o pouco que sou
— sem corpo, sem chão,
sem nome —,
simplesmente, acontece

17/05/25