Número de sílabas (desde 11/2008)

counter

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O PARA-SEMPRE DO EXTRAORDINÁRIO

Cássia Eller - Espírito do som, 2021 (com alterações.)
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


    Depois de tudo, resta a quase atingida esperança: o som há de ser a sublimação do extraordinário. O som, não a voz. Não o canto, o sussurro, a gargalhada. O som. O espírito, se fosse mensurado pela Física, seria finalmente revelado em sua consistência imaterial: ondas sonoras finalmente livres de sua fonte de emissão e, a despeito da eventual inexistência dessa origem, eternas como almas desprendidas do corpo.
    A ideia própria do som, o pensamento amorfo que antecede a palavra, presente na memória de uma voz ou de uma canção que persiste mesmo após a amnésia do que foram seus corpos — os verbos, as frases, os textos —: isso é a verdadeira essência. Lembro minha mãe cantando, mas sei lá qual música, sei lá os versos, a letra, nada!, só a voz, pura, cristalina. Da voz de meu pai, idem: um trovão confortável que nos guarnecia e assegurava a todos nós a firmeza de uma árvore. Combinados, os dois eram uma espécie de deus vibrante e primordial. Mas, nada de palavras; o som, apenas. Esse é o para-sempre do extraordinário.
    Ao longo da vida, tão barulhenta, tão ruidosa, os sons podem acabar se confundindo no caos — um Cronos devorando seus filhos: vão-se, um a um, os espíritos do maravilhoso sendo absorvidos pelas máquinas e pelos demônios que se apossam das pessoas e das frases. A indústria do mundo e suas engrenagens só são possíveis na insensibilidade da surdez. É necessário estrugir as almas dos homens para que se contentem com suas funções, para que o estrupício do mundo ocupe os ocos onde se calaram suas vozes, ecoando como pianolas autômatas compassando o dia a dia marcial do trabalho, da funcionalidade, da produtividade. Surdos a nós próprios, vagamos pragmaticamente, dançando no tempo marcado pelo chicote e pelo metrônomo.
    Há que se guardar o “espírito do som”, como diz a canção de Péricles Cavalcanti e Chico Evangelista, imortalizada pela Cássia Eller. Ocorre muito de imagens acústicas de uma canção se repetirem e repetirem no pensamento, enquanto realizo as tarefas diárias. Afinal, “o espírito do som brinca o tempo todo e é muito bom e feliz”, e a criança que eu fui é que a canta e depois escolhe outra, e outra… Ela não se entrega. Ela não me permite a rendição. Ela é que me salva os ouvidos do zumbido industrial do mundo e me permite a poesia.
    De som em som, vamos nos resgatando. O nosso destino é um aboio, solto e livre, condutor de nós mesmos. Uma sinfonia sertaneja, feita de rios em meio à caatinga. Há de ser.

04/12/25

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

VISITA ANUNCIADA

Vem, chega mais perto.
Faze-te de ar e me falta,
que já não fazes mais falta.

És familiar
como esse eu
que transita impune pelos espelhos.

Porém, é só o que te imponho:
ao contrário de mim,
não excedas a tua forma,

pois, ao que transbordo e sobejo,
essencias-te;
ao que me fragmento e abandono,
eternizas-te;
ao que me vou,
aportas.

Não te incomodes:
deixa tudo o que não és sobre o aparador
e vem,
pés descalços,
mãos vazias,
ventre oco.

Guarda aí o espaço que me reservaste.

Vê, eu te trouxe pão e tapioca
de longe, de quando éramos todos
filhos de nossos pais.
Tenho aqui um café e um punhado de estórias
que bem dão uma constelação a mais
em tua Noite,

essa Noite enorme,
mais clara que o dia,
que, há tanto, me anunciaste.

Que não fales,
que não rias,
que não digas os sabores de tua vinda,
não me importo.

Hoje eu escolho a prosa e o sorriso,
o monólogo suave e casual
diverso de tudo,
feito apenas de palavras inéditas
de uma língua recém-nascida.

Senta-te ao meu lado esquerdo,
que é onde fica minha saudade
― tão antiga e exata como tu —,
e deixa que ela também te fale um pouco.

Já não desespera;
está em paz.

Aqui, fico eu assim, em portas de domingo:
um riachinho reabrindo
o velho rio de minha vida.

Só para ti.

16-19/11/25

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

17 ANOS


    No dia de hoje, há 17 anos, fiz a primeira postagem do blogue. Escrever, até então, era uma retroalimentação afetiva e um eterno encher de gavetas reais e virtuais. Depois de assistir a uma palestra da escritora Ana Miranda com minha amiga Carmélia Aragão, na qual a autora falou sobre a importância dos silêncios da narrativa, nos quais o leitor tinha função criativa, decidi dar a cara a tapa (ou botar a cara no sol, o que, em Fortaleza, dá no mesmo) e me expor à leitura alheia. Desde então, eu me ocupo em imaginar quantas coautorias consigo provocar com esse compartilhamento de mim mesmo.
    Há 17 anos, resolvi começar a mostrar que sou, desde menino, outros, vários, múltiplos, infinitos, até quando durar.
    Obrigado a todo mundo pela complementação do meu silêncio e por tantos outros silêncios de que se faz a poesia.

06/11/25

terça-feira, 4 de novembro de 2025

CAMPO BRANCO

Foto: Gerardo Filho
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


é preciso cuidar do invisível
do insensível aos amigos
à família
aos deuses

é preciso guardar o ofensivo
ainda que a ele infenso
mesmo que dele enfermo
que por ele constrangido
que a ele adverso

pois é no diverso
no contrapeso do que é útil
que sustenta o nosso frágil relicário
e resiste a sempre fina luz
da nossa impossível dança

que rejeita a festa
que enfeita a vida
no vento das solidões

é preciso deitar na água
é preciso desaprender a andar
é preciso captar a essência
anterior a si
mas que ainda vibra no gesto sem cálculo
na desordem suave
de um banho de mar

é preciso cuidar, enfim, do ignorado
mantê-lo dançando em salões vazios
sob a chuva fina por detrás dos olhos
por detrás da alma
nos campos brancos de nosso mais íntimo
sertão

04/11/25

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A TRISTE PAISAGEM DA JANELA QUE SE DESPEDE DE LÔ

Lô Borges (detalhe ampliado da contracapa de Clube da Esquina - foto de Cafi)
(Clique na foto para ampliá-la.)

    Já desisti de tentar diminuir o abismo geracional entre mim e quem tem menos de 25 anos, quase a metade da minha idade. Pensando bem, a que sorte (ou azar) de coisas o mundo foi sujeito no último quarto de século? Toda a cultura pop e boa parte da economia e da política (até da religião) passou por conversões, adaptações ou apagamentos que as tornaram inindentificáveis pra quem já tinha 25 anos quando o milênio virou. Isso, sem falar na revolução tecnológica. Vi a morte do K-7, do LP, do VHS, o nascimento da internet, do CD, da MP3, do DVD e do Blu-Ray, suas respectivas mortes, sua tímida ressurreição e, agora, a ascensão do streaming, certezas e dúvidas que nasceram, morreram e reencarnaram.

Fita Cassete K7 Basf 90 Lh Extra I Estereo Cassete Lh-ei Ec
(Clique na foto para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


    Quando nasci, os artistas que me formariam já eram grandes ou estavam confirmando seu estrelato, e eu que lutasse (expressão millennial) pra correr atrás (expressão pré-hippie) da minha sintonia cultural. Minha própria cultura, a nordestina, ainda tinha uma passada orgânica de bastão (mix de expressão pré-boomer com da “geração Z”), dado o meu contexto socioeconômico. Ouvir Seu Luiz, Pessoal do Ceará, Fagner e o cânone do forró, do brega e da seresta era natural, tocavam no Roadstar da Belina do meu pai. A MPB também tinha espaço no radinho da cozinha, além das baladas românticas e, é claro, do rock nacional e dos gêneros gringos. Ainda não havia o agropop, o piseiro, o narcofunk nem os neopentecostais, então as FM eram mais ou menos democráticas, rolava de tudo, bastava mudar a estação.
    Passava horas da minha adolescência esperando o programa do Paulinho Leme ou o do Nelson Augusto, com a Basf 90 semivirgem a postos pra capturar, com sorte, a fina flor musical do meu tempo, coisa incompreensível pra esta geração atual, que nem sei mais como foi rotulada pelos vendedores de vape e Smirnoff Ice. Hoje, o mercado conseguiu virtualizar quase que completamente as mídias, tornando o acesso ao audiovisual portátil possível praticamente apenas mediante assinaturas de streaming. Sem o Spotify, fica muito difícil pra um adolescente de hoje saber quem foi Lô Borges, que, como se deveria saber amplamente, fez, em parceria com Milton Nascimento, um dos melhores discos de todos os tempos, o álbum duplo (duro, explicar um elepê duplo a um garoto de 13 anos de hoje) Clube da Esquina.

Lô Borges
(Clique na foto para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


    Foi mais ou menos por aí (meus 13 anos) que tive contato com o Clube, muito pobremente, pois não era um disco tão “comercial” assim. Lô Borges, mesmo, só fui conhecer uns dez anos mais tarde, quando, já com a internet, pude ouvir as suas coisas no YouTube. E, meu Deus!, que música era aquela! Uma genialidade adolescente, extremamente precoce e rebelde, desenquadrada dos padrões comerciais da indústria, original, mas reverente ao pop inglês, brasileira, mineira, íntima.

O "Disco do Tênis" - Lô Borges, 1972 (foto de Cafi)
(Clique na foto para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


    Nessa última semana passada, vinha acompanhando pelo Facebook e pelo Instagram as notícias de sua internação. Seus 73 anos (nem parecia!) não suportaram uma intoxicação de medicamentos, o que o levou ao coma, a uma traqueostomia e ao subsequente falecimento hoje, segunda, dia 03, logo após o Dia de Finados. A notícia veio perdendo o peso nesses dias. Sua idade — a idade daqueles de sua geração, o sedimento e o pináculo culturais musicais do Brasil — não nos deixaria com muita esperança de uma recuperação milagrosa em casos mais sinistros.
    Seu parceiro, Milton, está com 83 anos, já fez sua anunciada última turnê, gravou com amigos e medalhões, honrou sua velhice de preto-velho que se tornará orixá. Recentemente, também, divulgou-se seu quadro de demência. Um deus que vai se esquecer de quem é. Por mais amor e esperança que eu tenha, sei que, eventualmente, ele se tornará apenas o ícone, a referência que não pode mais criar novas próprias referências. Assim foi com Aldir Blanc, Dominguinhos, Hermeto Pascoal, recentemente.

Lô Borges
(Clique na foto para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

Milton Nascimento
(Clique na foto para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


    Foram pessoas como Lô, que eu, nascido em 74, tive de garimpar pra encontrar como joias prontas, ornando palácios musicais que me foram quase achados arqueológicos dentro de meu próprio tempo. Essa mineração eu fazia em sebos de vinil, de livros, na FM Universitária. Uma vez que tinha as gemas em mãos, deitava no chão frio do meu quarto e deixava o 3-em-1 da CCE (uma das primeiras compras de primeiros salários) fazer o seu trabalho: transformar-me; evoluir-me. E sim, eu já tinha consciência de que aquilo era um fogo de Prometeu. Talvez eu seja de uma geração que, por ser a última formada pelo rádio, tinha consciência do que um Trem azul, um Girassol da cor do seu cabelo e uma Paisagem da janela podiam fazer por mim. Lô, Milton, Beto Guedes, Fernando Brant, Márcio Borges! Como fui privilegiado de ter de ter precisado cavar fundo entre Xuxas e Betos Barbosas pra encontrá-los! Disse isto ao meu saudoso amigo Aloísio Menor, numa das últimas ocasiões em que falávamos sobre música, e era só do que falávamos: a raridade não está na baixa tiragem dos discos, mas sim na nossa dificuldade de tê-los, e, por isso mesmo, nós os valorizamos.

Milton Nascimento e Lô Borges - Clube da Esquina, 1972
(Clique na foto para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


    Com a internet, claro, isso não foi mais tão difícil assim. A última música muito difícil de ser encontrada foi Gabriel, de Teca Calazans. Minha última raridade. Desde lá, há uns quinze anos, tem sido relativamente fácil encontrar na web discos como Via Láctea (1979) e Os Borges (1980), ambos obras-primas de Lô, e olha que eu não assino nenhum streaming.
    Como comecei este texto afirmando, já desisti de me colocar no lugar de um adolescente atual, ainda que um como eu, sedento de arte. O máximo que me disponho a fazer (desconfio que é o melhor que consigo) é tentar imaginar a mim mesmo hoje, com minha ignorância de 13 anos, criado por uma família também contemporânea, ainda que a mesma. Perdoem-me a crueldade da nostalgia, mas só consigo sentir piedade e uma certa desesperança. Talvez, um certo pavor, também. Provavelmente, eu jamais viesse a saber quem são Roberto Ribeiro, Altemar Dutra, Dolores Duran, que minha mãe tanto adorava. O próprio Milton talvez só me fosse conhecido pelo seu dueto com Criolo, este, conhecido ocasionalmente apenas por ser contemporâneo. Ainda assim, só pelo YouTube, e olhe lá! Imaginem o Lô.
    São tristes tempos para se morrer. Mesmo homenageado postumamente como merecido, o grande artista só vai encontrar sentimentos legítimos entre aqueles, talvez, que tenham até seus 35 anos. Pra quem fica, como traduziu Milton em Canção da América, originalmente, de Ricky Fataar, só resta alar o pensamento na lembrança cantada por quem partiu. Mas, que asas tem quem tem seus 13 anos num mundo artisticamente tão raso, construído mormente ao consumo da música como fast-food e à inanição reflexiva sobre si mesmo e estes tempos? Que lugar tem a janela lateral do quarto de dormir de Lô na vida de um adolescente que, musicalmente, é uma pessoa em situação de rua?
    Lembrou-me agorinha minha amiga maior, Carmélia Aragão: “se eu morrer, não chore não, é só poesia”, escreveu Márcio, seu irmão, pra que Lô nos encantasse. Hoje, o luto é um campo de girassóis da cor de todos os nossos cabelos, Carmélie.

Milton Nascimento com camiseta da Chico Rei
(Clique na foto para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


03/11/25

domingo, 2 de novembro de 2025

PEGA

Luciana Brito Araújo - Vaqueiro na pega do boi da caatinga
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


ah, se fosse fácil
marcar com o ferro da luta
no couro da alma
o anagrama elucidado,
o fim do mistério do corpo

corpo vazio,
vagando sem dono no meio do mundo

rês indolente,
carne, sangue, osso e víscera

boi arruado,
bezerro de ouro desadorado,
sem cura no rastro,
sem sol nem malhada,
sem aboio,
sem abate

rompe o espírito,
esse cavaleiro encourado,
a reduzir sua criação
mor de que a noite, que guarda a onça,
esqueça na tarde a queda

e fique de longe a aurora assistindo
a esse encontro tardão,
ainda que certeiro,
que nasce em seu encalço.

02/11/25

CONSISTÊNCIA


há mais de mim nas coisas do que em mim.
nos lugares, no cheiro do vento.
onde dormi, mais que o sulco temporário de meu corpo,
que a fina camada de gordura e pele,
há o sonho e o assombro.
lá ficaram.

mas, quando ali retorno o olhar de dentro,
vejo que mais estou do que pareço.
vejo que a porta aberta que esqueci sem chave
gravou de mim uma partida que é mais
do que fui quando cheguei.

há mais de mim mesmo onde só estive em pensamento.
nas ausências, nas impermanências, ali estou, vigilante,
marcando a estada,
prenhez e prole, eu mesmo, onipresente, populoso,
territorial.

só assim
para aguentar este deixar de ser
constante
em que me perco, hora a hora,
sem nunca acabar de ser inteiro.

sou porque não sou;
estou porque, em outros lugares,
me abandonei.

minha âncora é o mar.

02/11/25

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

SUVENIR

 
Chaveiros que comprei em Recife há uns 25 anos.
 
espalhei pela casa suvenires
frutos há muito arrancados
de pequenas felicidades

pistas, miolinhos de pão
marcando o caminho
sem volta

minhas pedrinhas miudinhas
me esqueceram de Aruanda
me esqueceram nos vasos de plantas
nos fundos dos bolsos
no fundo do mar

seja eu também, talvez
uma pedrinha miudinha
que nunca viu baladeira
nunca matou passarinho
nunca correu sobre as águas

na mão abandonada do menino
que me colheu como suvenir
para não crescer só

e que não cansa de olhar o mar

31/10/25

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

MINHA RUA

 
Placa indicadora de minha rua, que fora afixada na fachada de minha casa nos anos de 1970, retirada posteriormente devido a uma reforma no anos de 1990 e, atualmente, peça de decoração de minha sala (foto do autor).
 
sinto falta da minha rua de calçamento irregular,
que me trazia a casa
e era o meu lugar entre o meu mar e o meu sertão

hoje, asfaltou-se
como um rio assoreado,
onde o tráfego esmaga
o peixe em que a evolução errou

nem um centímetro a mais foi posto,
mas uma distância definitiva, invencível,
ilhou cada um de nós,
náufragos, aratus refugiados
em buracos na areia

perderam a graça as chuvas nas biqueiras
e as guerras de jambo
entre nós, os ribeirinhos acanalhados

a guerra de hoje é outra:
é entre o prédio e a gente;
é entre as facções e a gente;
é entre a polícia e a gente;
é entre a gente

o tempo passou pela minha rua em paradas militares,
em procissões de loucos,
em desfiles de Santos Reis

mas, principalmente, o tempo
arrastou sob seu ventre
nossas pegadas, nossa história,
nossas árvores,
como fazem máquinas compactadoras
terraplanando o futuro

ainda teimo em curiar
quem, dos que ficaram, ou suas crias,
que riscará a pedras de cal
o próprio nome na própria calçada
da própria casa,

mas, sem sucesso

não há mais basculhos
nem de muros nem de gentes
que se escrevam no chão
como quando a rua era uma tribo
e nela vadiavam selvagemente
os sonhos de quem nunca fomos

24/10/25

sábado, 17 de maio de 2025

SEIXO ACIDENTAL

Pedra de quartzo rosa coletada de um canteiro central de Fortaleza.
(Clique na imagem para ampliá-la.)

não é meu o corpo
de que sou sombra,

tampouco o chão
onde me deito
o é

esta tarde, este sol
e este equador evaporante
me carregam pelas calçadas,
por entre os carros
e por debaixo das portas:

folha e pó,
que o vento esquece por aí
em algum de seus quarenta graus

fico, me greto
nas falhas dos rodapés

me varrem,
e assim faço parte
das casas que visito

o que é meu
são o caminho para,
o espaço entre,
a divisão de
e a distância a

isso de ter de ser
é como dar nome a bicho,
a planta, a vento:
desculpa a vida

aceito o acidente de ser
apesar do corpo,
apesar das roupas
e dos bons-dias

e, apesar de todo o adeus
que me acompanha,
saúdo desconhecidos,
trabalho a palavra,
frequento hostilidades,
cato seixos de quartzo e mica,
búzios e refugos abandonados
por mudanças alheias
e me muno de luz e som
por toda parte
todo o tempo

ser por um acaso
e, por várias vezes,
deixar de ser
acabam por doer intenso,
mais que viver
propositalmente,

porém é daí que tiro
voz, palavra e silêncio,

e todo o pouco que sou
— sem corpo, sem chão,
sem nome —,
simplesmente, acontece

17/05/25

sábado, 10 de maio de 2025

TRANSAÇÕES MARÍTIMAS

Pequena ilha

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

na ilha, são as ondas que trazem novidades:
lixo da melhor qualidade, do plástico mais cancerígeno
a mimos de MDF, bibelôs de cacos de vidro
e cartas, muitas cartas de amor terceirizadas
— narrativas meméticas elaboradas pela mais sintética IA
e balés tiktokeanos de hipnótica sensualidade.

da ilha, a maré que leva alma e conteúdos midiáticos
também remete fragmentos de pele e sangue,
além de pelos de toda sorte e cascabulhos de dentes
com destino aos recifes,
onde todo um viveiro de xaréus e anêmonas
fazem as vezes de pets e receptores.

há também extravios,
e calha de um tudo encalhar em outras ilhas;
e maravilhar etnias distintas de canibais, e pigmeus,
e outras gentes mais evoluídas,
que acreditam que o mar lhes prega peças
em que homens mimetizam horrores desconhecidos
e outras coisas incompreensíveis.

também há cartas e canções
que cabe ao vento compor em suas tempestades
e muitos, quase infinitos
olhares desendereçados
— cargueiros abarrotados de especiarias
e fartos desjejuns
que têm na ausência de destinatários
a sua própria e particular viagem.

deitam-se na preamar à espera da vazante,
garrafas prenhes de naufrágios que são,
e se lançam sonâmbulas,
engravidando-se ainda mais
à medida que mais naufragam.

a elas, o mar as deixa em paz,
que jaez de quem deriva é sonho
tal qual o de espírito que perambula
pelos cantos escuros de uma casa:
sonhar é deixar-se dormir,
e partir sem destino é como regressar.

10/05/25

domingo, 4 de maio de 2025

ESQUECER PARA LEMBRAR

Art Never Sleeps - Stick to the plan

(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


um cachorro parado, olhando lado a lado,
atravessa
como um equilibrista que pudesse correr
sobre a corda bamba.

um carro desacelera;
outros, não.

é assim todo dia, em toda parte:
cidades, e gentes, e chãos de navalha,
e riscos de morte que talham a vida.

pedaços que nunca se encaixam
e ondulam no vento
junto a sacolas plásticas, fuligem e folhas
despersonificam-se em paisagens e contextos,
em estatísticas incômodas,
em conteúdos produzidos para as redes sociais.

são muitos, tantos quanto os matinhos
que prefeituras mandam aparar de vez em vez,
e por aí estão, como os passinhos rápidos e inocentes
riscando de unhas negras a casca negra do asfalto.

é não se chegando ao outro lado
que se chega ao outro lado.

04/05/25

domingo, 30 de março de 2025

RASCUNHO DE ÍCARO

Pink Floyd - Us and Them
(Clique no vídeo para abri-lo em nova aba e na legenda, para acessar a página de origem.)

Com que mais foste, em tal estado,
a marca finda em tua casa,
deitaste a mão em planta rasa,
e um novamente é rabiscado.

E, traço a traço, lado a lado,
ergueste a ideia sobre a brasa
e deste adeus à velha casa
igual quem mora em chão roubado.

És todo sonho, és todo fado:
a pena antecedendo a asa,
batendo como quem se atrasa,
num céu que azula imaginado.

Donde vieste, um não! e um brado.
Onde acabaste, nada abrasa.
E, ao Sol, que acima te desasa:
renasces ar, sem ser alado.

30/03/25

sábado, 22 de março de 2025

TODO MUNDO MERECE UMA “GOIABEIRA MARAVIÓSA”

(Uma crítica ao filme Chico Bento e a goiabeira maraviósa.)

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

    Talvez o principal motivo que me leve a escrever sobre minhas impressões de um filme seja o grau de afeto em que ele me põe. “Afeto” vem do latim affĕctus, particípio passivo de afficĕre, e significa “colocação de algo ou de si mesmo em um certo estado” (bom ou mau), e daí, “afeição”, “afeito” (ou “contrafeito”), “aficionado” etc. Pois bem. Já é meia-noite e 57 minutos, e só agora eu consegui domar o suficiente meu estado de euforia e de recuperação da inocência infantil em que Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025) me colocara e posso escrever este artigo com alguma objetividade.
    O cinema “infantil” nacional sempre se apresentou de forma, no mínimo, questionável. Se analisarmos as duas principais fontes desse subgênero, que são os Trapalhões e a Xuxa, e mesmo considerando as épocas e os contextos socioculturais dos trabalhos resultantes, temos produções que variam entre um romance brega disfarçado de pastelão de péssimo gosto e um pastelão descarado, de pior gosto ainda, ou seja, temos filmes com intenções e estéticas “infantis”, porém com inúmeras características de comédias para o público adulto, a maioria, desgraçadamente realizada. Parece que o comprometimento principal desse segmento era mais com as figuras públicas de seus atores, fossem estes apresentadores, comediantes, humoristas, cantores ou dançarinos, que com aqueles que deveriam ser a finalidade desses filmes: o público infantil. Algumas dessas obras e de outras, tentando atingir esse público, tornaram-se infantiloides, visando a crianças arquetípicas, imbecilizadas pela idealização feita por roteiristas, diretores, produtores e também atores.
    Contudo, nada disso ocorre com essa “maravía” que é Chico Bento e a goiabeira maraviósa. Estava esperando assistir a esse filme desde que vi o primeiro trailer, ano passado (ele começou a ser filmado em 2023). Na ocasião, a primeira coisa que me chamou a atenção foi o ator principal, Isaac Amendoim, que não me deixou dúvidas de que ele, sim, era o Chico Bento verdadeiro, mais que o de seu criador, Maurício de Sousa. Esse menino ganha a gente na primeira cena, antes mesmo de abrir a boca. Mérito dele, óbvio, mas também dos escaladores de elenco Luciano Baldan e Fernanda Schaefer, que escolheram muito bem todos os atores mirins e adultos do filme. O roteiro, escrito por Elena Altheman, Raul Chequer e pelo diretor Fernando Fraiha, também é responsável pela precisão das interpretações, que acertam em cheio em fazer um filme infantil sem a estupidez com que alguns realizadores (gringos ou conterrâneos) imaginam seus públicos-alvo.
    A história tem como enredo o impacto da construção de uma estrada asfaltada proposta por Dotô Agripino (Augusto Madeira), que é anunciada como uma proporcionadora do progresso a Vila Abobrinha, pois substituiria as vias de terra esburacada, conectaria o lugarejo e todas as propriedades dos moradores ao seu redor com as fazendas dele e viabilizaria um aumento do comércio da produção geral, incrementando o lucro de todos, mas que consiste na realidade em uma estratégia de Agripino para explorá-los, pois ele aumentaria imoralmente o custo e a quantidade do asfalto, sendo ele o único fornecedor de matéria-prima, maquinário e mão-de-obra. Além disso, a sua falta de escrúpulos levaria à destruição dos rios e de boa parte da natureza da região para a realização da obra, intento que ele havia ocultado de todos. Contudo, o verdadeiro deflagrador do conflito é a insistência de Agripino em derrubar a goiabeira pertencente a Nhô Lau (Luis Lobianco), árvore cuja semente foi plantada no mesmo dia do nascimento de Chico e com a qual este tem um vínculo não só lúdico e telúrico, mas, essencialmente, afetivo, tratando-a ele como sua “melhor amiga”. A partir daí, desenvolvem-se os principais temas do filme: a destruição ambiental em virtude de um avanço que beneficia quase unicamente o detentor do capital e dos meios de produção; o impasse entre o “atraso” atribuído à vida em comunhão com o meio ambiente e o “progresso” relacionado à urbanização; o telurismo e o valor da amizade; e a falta de comunicação geracional, fator que impede que os adultos considerem as perspectivas das crianças.

Nhô Lau (Luis Lobianco) e Chico Bento (Isaac Amendoim)
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

    Quase todos os atores estão na medida certa das personagens de Maurício de Sousa (que deu uma de Stan Lee e fez uma pontinha) e entregaram um texto quadrinhesco sem ser antinatural, deixando o espectador confortável. Isso acontece (acredito eu) em boa parte porque crescemos todos lendo e amando as revistinhas do Chico, e o filme respeitou bastante este nosso arcabouço cultural. São criados logo nas primeiras cenas não só um encanto com o “Isaac-Chico”, mas, principalmente, um vínculo afetivo com milhões de “chicos” que leram e releram e passaram essas leituras para seus filhos e netos (a personagem foi criada em 1961) de tal maneira que Chico Bento tornou-se um elemento identitário nosso, assim como Mônica, Cascão, Cebolinha e Magali. Os outros atores mirins se encaixaram muito bem nas suas respectivas interpretações, destacando-se Anna Julia Dias (Rosinha) e Pedro Dantas (Zé Lelé), mas quero salientar aqui a participação dos adultos. É comum vermos em filmes com personagens interioranas (especialmente, as comédias; principalmente, os infantis) uma estereotipagem agressiva que nos desconecta com o que eles poderiam ser. Atribuo isso em maior parte aos preconceitos de classe, de região e até mesmo de raça, mas também à escalação de elenco, que prioriza atores que se mostram limitados ao sotaque de sua própria região e que, quando se propõem a interpretar personagens “regionais”, fazem-no de maneira macaqueada, grotesca e hedionda. Claro que há exceções, porém, nesse filme, senti que houve uma bastante curiosa: por se tratar de personagens que já nasceram caricatas nas HQ, o limite que deveria, como de hábito, ter sido monstruosamente cruzado não o foi. Os atores adultos se mantiveram na linha entre o caricaturesco e o real, mas o fizeram com bastante generosidade. Luis Lobianco (Nhô Lau), Guga Coelho (Nhô Bento, este, um pouco exagerado), Livia La Gatto (Dona Cotinha), Augusto Madeira (Dotô Agripino), Thaís Garayp (Vó Dita), Débora Falabella (Professora Marocas), Taís Araújo (Dona Goiabeira) e os outros entregaram personagens tanto críveis dentro do espectro quadrinhesco quanto representativas de suas classes e região. Dessa forma, a trama, que é contada de uma forma bem simples e típica de uma historinha em quadrinhos, convence apesar da singeleza, pois o filme consegue o que todo bom leitor de HQ, no fundo, espera: “ler” um filme.

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la.)

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la.)

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la.)

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la.)

    E que filme bom tecnicamente! Produzido por Bianca Villar, Fernando Fraiha, Karen Castanho, Daniel Rezende, Marcio Fraccaroli e Marcos Saraiva, ele tem uma cinematografia caprichada (Gustavo Hadba, ABC), com uma paleta de cores vivas e ensolaradas, sem o exagero que, muitas vezes, filmes infantis tendem a cometer. A direção de arte (Marinês Mencio) se preocupou com os detalhes no limite entre o plausível e o cartunesco, ou seja, eu acreditei que todo o figurino (Leticia Barbieri) condizia com a realidade, assim como as locações e os objetos em cena, mas também não me afastei em nenhum momento da sensação de estar dentro de uma HQ do Chico Bento, o que, garanto, me grudou na narrativa o tempo inteiro. Até mesmo a inserção das sequências animadas em 3D e 2D (François Puren) no meio e nos créditos se alinha com a qualidade da obra, pois não rompe o fluxo do live-action, pelo contrário, a fusão é perfeita, justificada e motivadora da trama e não destoa do que este vinha apresentando. A edição (Daniel Weber, AMC) é bem feita, dando à gente o tempo certinho de cada ação, assim como as elipses entre elas, o que deixou as transições muito parecidas com as de uma HQ longa. A única ressalva que faço é à qualidade do som dos diálogos dos atores mirins, que se ouvem bem, mas não se entendem às vezes. Mesmo assim, apesar de ser uma pequena falha técnica, eu atribuo mais à naturalidade com que eles empregaram o sotaque do interior de SP do que a uma possível incompetência do som direto (Abrão Antunes).

Chico Bento e a goiabeira maraviósa (Fernando Fraiha, 2025)
(Clique na imagem para ampliá-la.)

    Chico Bento e a goiabeira maraviósa deixou difícil a incumbência que me dei de escrever pondo um pouco de lado a subjetividade de quem ama aquilo que vê e se vê naquilo a que assiste. É um filme que me sobrecarregou de afeto desde o trailer, pois trata de alguns dos tesouros mais preciosos que carrego comigo: minha criança interior, minha identidade de menino da cidade que cresceu com raízes no sertão e minhas primeiras leituras, minha bacia cheia de revistinhas que meu pai, principalmente, comprava para mim. Porém, não unicamente por isso. É uma história que faz sorrir com a autenticidade própria dos espíritos simples um espectador que vive em tempos de horrores e flagelos, pois, apesar de se tratar de um embate da sordidez contra a inocência, ela desenvolve isso de modo inocente, além de singelo e muito bem-humorado. Em vários pontos, eu me peguei literalmente “maraviádo”, boquiaberto de riso e choro. Adulto, vi um filme que não fizeram para mim, mas que também fizeram para mim. Quando criança, produções assim, feitas na minha língua, não existiam, por conseguinte eu não existia no meu cinema. Entretanto, eu existia nas revistinhas, e foi aí que Chico Bento me acertou, bem no cerne do meu afeto de criança, ainda existente, mesmo que bem escondido, no coração do adulto. Mal posso esperar para mostrá-lo aos meus filhos e ver nos seus olhinhos que há um lugar que eles e eu coabitamos — uma Vila Abobrinha com um vizinho de boa alma, ainda que ranheta, possuidor de uma goiabeira onde podemos subir e roubar os melhores frutos de nossas inocências. Uma goiabeira “maraviósa”, enraizada no melhor de nossos afetos.
    Assistam “maraviádos”

22/03/25

quinta-feira, 6 de março de 2025

DO LADO OPOSTO DO MAR

Raimundo Cela
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar sua página de origem.)

    Lembro de ouvir meu pai dizer, num desses diálogos que não têm âncora no tempo, que eu tinha uma bomba na perna esquerda. É dessas coisas que só pai nota e que só pai diz. E foi dita na hora certa, pois ficou. Atestou-me. Eu, apesar de destro, era um canhoteiro, decretara meu pai. Muita coisa importante virou vento, muita virou furacão: assim é a palavra, quando o portador é alicerce, coluna e teto. O vento motiva a vela, afresca a pele, seca a lágrima. Torna o dia um dia bom. O furacão averte o mar e cria homens de terra, de pedra, homens-recife. Dos ventos, eu me lembro disso e de ouvi-lo dizer coisas como “o mar não tem cabelos” e que nunca me deixaria afundar. Já aos furacões, resisto, e só.
    Que homem só foi o meu pai. Que homem só eu me tornei. Minha perna esquerda, que hoje é o meu tronco, o meu mourão, ainda me suporta. Na beira do mar, é ela que me ancora. Fateixa de pau-e-pedra, guardando as minhas partidas. Ainda assim, quando olho o mar, procurando não ver ninguém, eu os encontro no sargaço, na maresia, nas vagas. É na ausência que estão meu pai e todos os meus fantasmas. É no obscuro das saudades que arrebenta o furacão de quem não partiu.
    Digo isso da perna esquerda porque, há dias, as dores da direta me dilaceram. Há uns quinze anos, tive nesta um derrame que me custou a sustentação e causou o subsequente definhamento muscular. Além disso, quando tinha uns sete de idade, meu pé direito foi moído pelos aros de uma roda de bicicleta e nunca teve os ossos soldados corretamente, o que me fez conviver com a dor de ficar em pé desde então. Bem recentemente, talvez resultado da má prática de esportes, a articulação do meu ombro direito vive em eterno estado de inflamação, o que me limita os movimentos consideravelmente. Além do mais, tive as duas fraturas na mão direita: uma, resultado de um jogo de vôlei de rua; outra, de uma surra que dei num dos dois únicos ladrões que me roubaram. Isso, sem levar em conta os inúmeros acidentes com facas, anzóis, ferramentas e outras pequenas mutilações ao longo dos anos. Tudo, do lado direito. Agora, espasmos elétricos de punção e fogo na perna direita me agoniam e me fazem pensar se não é nesse lado, à guisa de tiracolo, que carrego meus furacões. Ou se é por aí que eles me carregam. Será que é o mar, o mar alto, a rota aonde eles me fustigam? Será que a minha firmeza, que me finca e sustenta, não me estaria negando o desdobramento de um confronto real com a procela? O que eu seria depois de todos os embates e massacres que nunca me foram impostos lá, após a arrebentação, passando a costa, no além da ausência dos espíritos?
    O que meu pai talvez sentira e nunca me dissera é que aquilo que resta ao homem que evita o mar é a erosão. É ir se desmanchando em areia e fazer parte do chão da praia, parte do mar, parte da terra. Talvez, por outro lado, existam muitos mares menores onde navegam os homens que são o que são, e nada mais: funcionários, pais, bêbados, vagabundos — homens de poucas metáforas. Ou ainda, que o mar grande seja uma maneira de existir ausente, um lar reservado apenas para o depois.
    Eu amei o mar por meio do meu pai. Pela sua mão, perdi e ganhei o medo dos afogamentos; pelo seu olhar, aprendi o respeito e a medida segura de atrevimento. Porém, hoje, aqui, seguro, sou fustigado pelos furacões que deveria haver apenas lá. Gostaria de lhe dizer que, como na maioria das coisas de que me lembro dele e das quais aprendi com ele, existem no homem e na vida dois lados, duas forças que se encontram sem muito conflito, mas cujos violência e desastre se acentuam conforme nelas se adentra. Sobretudo, quando essas forças são menosprezadas no cotidiano, na paciência com que a onda converte o recife em areia fina, na agressividade imóvel de quem olha o mar dolorosamente.
    Sem esse modo de amar, contudo, o outro que eu seria — talvez sem dores, talvez sem senso — não saberia o que é esse cruzamento da fronteira divisória do homem: tudo que sei de mim foi costurado e ponteado pela dor de permanecer e pela angústia de não partir. É possível que essa seja a condição real do homem e que não existam marinheiros, exceto em fantasias e delírios de poder. É possível, portanto, que a natureza da vida sejam este fremir de nervos e tendões, estes ossos tortos e toda a sorte de concretudes físicas que me ancoram na rocha do cais.
    Entretanto, é também possível que este modo de amar o mar seja a única coisa que possibilite a existência do mar. O largo imenso donde olho o mais imenso; e, nesse mais imenso, o verdadeiro outro lado. Não os sei, mas suponho os ventos que sopraram meu pai. Todavia, é da natureza dos homens sós, isso eu sei por certo, costurarem eles mesmos os farrapos de suas velas ao mesmo tempo em que trançam os cabos de suas fateixas. Resistir também é um modo de navegar.

06/03/25

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

POLÍTICA INTERNA

Fonte da imagem: @iwanttoleaveok (Instagram)
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)


é difícil criar um país sobre outro
sempre resta alguma edificação
uma estrutura de linguagem
um nadinha de cultura

o povo teima
a terra teima, até a fauna teima

deixar continuar a ver se melhora
é a covardia que renite
como única forma possível de apaziguamento

ou isso
ou virar cometa
bomba H onipresente
peste e obliteração

pensar que ser país é democracia, diplomacia
e outras louçanias
não cola mais na catastrófica vida em comum
lugar de despotismos e ditaduras imperiais

mas aqui se teima
e aguardar no sofrimento o cansaço da guerra
tornou-se o que se tem para hoje
e amanhã
e depois

a ver se há um modo mais digno
de não perder fronteiras
de não queimar constituições
de manter os invasores visitantes
a quem, um dia, há de se dizer adeus

24/02/25
 
P.S.: Poucas coisas são mais empobrecedoras em literatura do que explicar as alegorias de um texto, mas, dadas as circunstâncias sociopolíticas atuais, achei necessário explicitar aqui que a “política interna” de que trata este poema é uma metáfora para as angústias pessoais de um indivíduo a cujas sanidades mental e emocional a vida em sociedade e as crueldades e atrocidades do cotidiano têm se tornado fatores nocivos, ou seja, não há nele nenhuma expressão de defesa de ditaduras, nem de xenofobias, nem de nenhuma conduta reacionária, menos ainda de apologia ou de incentivo a elas. Trata-se de um poema íntimo, que aborda as dificuldades que uma pessoa tem de lidar consigo mesma e com as circunstâncias em que se insere. A codificação extrema nada mais é do que marca de estilo e assim deve ser considerada.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

AGORA, A NOITE

Criança amazonense no embalo da rede. - Divulgação/Caminhos da Reportagem (Modificada.)
(Clique na imagem para ampliá-la e na legenda, para acessar a página de origem.)

Bebo o café que é possível
com o pó da manhã e a água das horas.
Lá fora, tudo cidadeia,
e o espaço me comprime em minha casa verde,
velha e resistente.
Os urubus que me vigiam
pragalham da carne imputrefata
sitiando todas as vias de felicidade possível.

Não há madeira em minha porta,
ou horizonte, na janela.
Minha cortina de trepadeiras ainda tenta;
minhas espadas de Ogum ainda tentam;
e as de Iansã, também;
mas, aqui, neste quintal de trasantontem,
adormeceram já todas as guerras

— a paz que resta é mofo e cupins
e mijo de gatos nas calhas.

Amanhã, quando o sol me encontrar,
será de nós ambos o ocaso:
tempo em que nos deixaremos finalmente anoitecer
da noite que veio me buscar quando menino,

quando o paquete de minha rede me embalava sem fateixa
pelo Estige e pelo Pacoti,
pelo espaço e pelos abismos,
sem sonhar que as tempestades dormiam comigo
fetalmente, no porão sem escotilha.

Na casa velha, as tralhas acordarão limpas,
embaladas no porão da jangada que ela se tornou.
Um mar vesperal crepuscula prestes,
e um terral desancora a terra
de que já não sou mais feito.

Agora, a Noite.

30/01/25