(Para o meu compadre João, que virou música)
Nossa morte não nos pertence.
Conclui-se, portanto, que os que ficamos não comemos da carne
nem dos ossos,
a exemplo de urubus e hienas.
Matamos o intangível.
Não me importo com o espírito;
não tenho onde guardá-lo.
Ele está por aí, onde estive e nem lembro ou nem sei.
Ele mesmo não é meu.
Não o tratei bem.
É como um cão que fugiu, em quem a coleira só serve de insígnia:
tinha dono, coitado.
No dia em que nos reencontrarmos,
direi: ...
Não direi é nada. Terei vergonha.
Serei o medo do pai diante do filho abandonado
ou o nó na garganta do filho
seja de vômito ou de pranto
das saudades corrosivas e das palavras apodrecidas.
Contudo, aos que ficarão
caberá pisá-lo num cadinho com outras especiarias,
misturá-lo às lágrimas concernentes numa lama adocicada
com que, a despeito da incongruência,
untarão meu corpo
até que eu seja quem amaram, odiaram, esperaram e expulsaram,
numa forma totalmente diversa
de quem fui.
Se pertenço?
Pertencer é luxo de coisas,
e sou a ausência delas nos bolsos dos meus.
Guardo o ar no peito só pelo tempo de estar vivo.
Viver é suspirar.
29/08/18