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quarta-feira, 29 de agosto de 2018

DA PERTENÇA

(Para o meu compadre João, que virou música)

Nossa morte não nos pertence.
Conclui-se, portanto, que os que ficamos não comemos da carne
nem dos ossos,
a exemplo de urubus e hienas.
Matamos o intangível.

Não me importo com o espírito;
não tenho onde guardá-lo.
Ele está por aí, onde estive e nem lembro ou nem sei.
Ele mesmo não é meu.
Não o tratei bem.
É como um cão que fugiu, em quem a coleira só serve de insígnia:
tinha dono, coitado.

No dia em que nos reencontrarmos,
direi: ...
Não direi é nada. Terei vergonha.
Serei o medo do pai diante do filho abandonado
ou o nó na garganta do filho
seja de vômito ou de pranto
das saudades corrosivas e das palavras apodrecidas.

Contudo, aos que ficarão
caberá pisá-lo num cadinho com outras especiarias,
misturá-lo às lágrimas concernentes numa lama adocicada
com que, a despeito da incongruência,
untarão meu corpo
até que eu seja quem amaram, odiaram, esperaram e expulsaram,
numa forma totalmente diversa
de quem fui.

Se pertenço?
Pertencer é luxo de coisas,
e sou a ausência delas nos bolsos dos meus.

Guardo o ar no peito só pelo tempo de estar vivo.
Viver é suspirar.

29/08/18