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terça-feira, 29 de setembro de 2015

MUNDO VASTO

Redemoinho, xilogravura de Arlindo Daibert
(Clique no nome do artista para abrir sua página e na imagem, para ampliá-la)
 
Mundo vasto, mundinho vasto
Tu és tão pequeno
Tu tens horizontes tão longes
Que, de tão longes, somem como se não existissem
Por isso és miúdo, derramadinho de não ter limites

O que nos faz grandes, mundo, é o que nos contém
O que não nos deixa derramar
O que nos embarreira líquidos dentro do açude útil
Banhando a vida de benevolência
Guardando peixes
E sangrando debaixo da chuva

Tu és mar de fragatas
Onde deita o sol e caem raios
Tu és o mundo da baleia branca
Que cabe direitinho no coração doente da palavra única:
ONDE?

Tu não és grande
Nunca saberás o que é contarem contigo
Mais que se um deus fosse, monumental como a necessidade
E certo como a morte
Dentro das dimensões emparedadas da vida

Tu és pequeno e inútil
Como todo o espaço entre as estrelas
E todas elas juntas num céu esparramadinho
Desfraldadinho de negro
Tu és ínfimo e inútil como a noite
Que só serve para se dormir
— O que é nada mais que se esgueirar
Em filetes metafísicos para dentro de um vazio
Que só não é menor que a própria noite

Eu, mundo, sou água também
Também me vaporizo em perdigotículas
E me enamoro do ar
Mas aqui, na terra, eu molho
Eu lavo e banho, eu sacio e margeio
Eu comporto almas que vão e vêm
E que em mim dormem o sono dos que nasceram para viver
Eu sou a angústia da existência
O dia a dia da sede
E o plicar agudo do vinco na lama

Sou grande como um grito
Que se enormiza na parede da voz
Duro o infinito do instante em que existo
E sou maior que a própria vida enquanto isso
Sou, mundo, a parte de dentro da pedra
Que germina o aço
E que esconde a história
Sou o portal da porta trancada
E todo o mistério por trás das sombras

Não sou como tu
Que és perdido no oco do eco
— Uma Eco sem Narciso —
E que te vês borracho em teu universo de movências
Sem saber se vais ou vens
Sou firme, sou farto e sou forte
No meu estar que é sempre pleno de mim mesmo

Eu sou o que serias se te abrisses para dentro
E te inclodisses
Num antimóvito real, numa antinuvem, numa antionda
Eu sou, mundo, o antimundo
Que te devora de uma bocada só
E arrota redemunhos.

29/09/15

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

TRÊS IRMÃS

Num dia de festa em meu coração,
o Amor se casou com a Tristeza,
a qual pariu nas águas três filhas:
a Saudade, diplomata inata, sempre a mediar
os estertores da mãe com os afagos do pai;
a Melancolia, que herdou da mãe a cáustica
e inabalável certeza de sua avó, a Morte,
ainda que, da Vida, mãe de seu pai,
transviara o embornal da esperança;
e a Ternura, moça muito quieta, morena,
destoante da brancura das irmãs,
que levava os dias cosendo-lhes roupas
para o frio que suavam e lhes queimava a pele.

Todas amavam os homens.
A Saudade queria-os para si, possessiva e extenuante,
e roubava-lhes o coração com as armas mais feminis,
ao que lhes depositava em troca no peito,
a fim de confundi-los,
um labirinto de nomes mortos
que lhes soprava aos ouvidos
como se vivos estivessem.
Não sabia nada além disso,
atrapalhada que fora pela mãe
quanto aos ensinamentos de seu pai.

A Melancolia, esguia, quase esquálida como a avó materna,
vivia para tê-los na cama, chupar-lhes o sangue pelos poros
em beijos firmes, como lhe ensinara a mãe,
atada à crença de que tudo é consumição.
Ardia gélida no coração dos homens
e invernava-lhes tudo o que era verão,
temendo perdê-los por não lhes saber
os verdadeiros desejos.

A terceira, mais jovem, não tinha pressa
e fazia-se rara nos salões.
Não carecia dos homens nem, muito menos, procurava-os,
o que a fizera quase desconhecida por eles.
Vira muito na mãe a ausência de corpo e alma
que semeava nos campos dos sonhos humanos,
sua matéria-prima preferida.
Porém, amava-os, mas não perdida como as irmãs.
Era-lhes devota. Cultuava-os.
Conhecia seus desejos, onde não se intrometia.
Sabia-lhes a força, a fraqueza e a necessidade:
a necessidade, acima de tudo.

Aparecia entre eles sempre com simplicidade
e se doía muito quando ignorada,
o que lhe deixava a morenice ainda mais bela.
O pai lhe dera a imensa capacidade da paciência,
temperada que fora pela teimosia da mãe.
A Ternura era a única das três que não desistia dos homens.
Logo essa, que era sua principal virtude,
fazia acharem-na tola, tíbia,
maternal demais para ser amante.
Os homens não sabiam nada de seu pai.
Não entendiam a intensidade de sua febre
nem as chamas de seu sexo.

Aos olhos dos homens, era infantil
como quem dá seu tempo a um gato
ou põe guarda-sóis sobre roseiras.
Era a menor das três.
Não era sólida nem tinha a onipresença da Saudade
nem era elegante ou vaporosa como a Melancolia.
A Ternura destoava daquilo a que se acostumaram os homens.

Conheci todos, cortejei todos.
O pai ensinou-me a coexistir com a mãe,
que me serviu de amante por muito tempo.
Deitei-me com as duas mais velhas,
que me levaram alguns anos de vida e saúde
e me deram nada além de frio e arritmias,
memórias com que me cortejam de volta até hoje.
Porém, veio-me cedo, de contrabando,
oculta num peixe pescado, num livro lido,
numa noite, entre as estrelas, num desenho feito
com lápis de cor,
no sorriso mais lindo,
a mais jovem.

Por causa dela, sorrio
e me faço entender com os olhos.
Nunca me deu nem me tirou nada;
apenas, com a mão estendida,
conduziu-me até a água onde nasceu
e me deixou ali também, finalmente, nascer.
Abraçou-me sem desejo de posse,
e nunca em minha vida me senti mais querido.
Hoje, vive comigo,
aparando-me as unhas e cerzindo-me as meias.
Beija-me bons-dias, mesmo sendo noite em toda parte,
e ferve águas para meus pés cansados,
quebrados pelas outras mulheres da família.
Quando a desejo, ela sorri
e se deixa amar,
única semelhança que observo herdada de sua mãe,
mas, ao contrário desta, cuja ausência me continha,
deixa-me esvaziar-me, como eu sempre quis,
no gozo da mais absoluta liberdade.

01/09/15