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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

QUANDO MORRE UM POETA

Fotografia: Don Pajata - Mário Gomes

(Texto antigo, de 2005, tardiamente editado em homenagem à iluminação do poeta Mário Gomes ocorrida hoje, o último dia deste ano tão implacável de 2014)

Quando morre um poeta, é como se, à noite, por um instante, sumissem toda a brancura da lua e o piscar das estrelas. Só por um instante, a noite se apaga totalmente, e o mundo mergulha súbita e desastrosamente num nada, como num espasmo, como num ataque epiléptico. Tudo se apaga, tudo se cala, anjos e demônios se refugiam desgraçados nas sombras do mesmo susto. No fundo dos corações, uma espécie de mágoa ao contrário se instala, e um incêndio é ateado nas gargantas, o sangue ferve, o cérebro ferve, os pulsos se trancam, e o peito, miserável, despedaçado, grita sem sucesso uma dor sem nome.
Quando morre um poeta, morre junto um pedaço do tempo da vida do Homem na Terra. Um pedaço que ainda não viera. Nos jarros secos das mesas de vidro das salas de visitas, nas mesas derramadas de bebida velha, nas vaginas das mulheres da vida, nas varandas suicidas emparelhadas, nos rincões ressuscitados das memórias, nas flores de plástico empoeiradas, nos baixios, nos sorvedouros, nas cruzes de concreto e de argamassa das igrejinhas, no sal das lágrimas, em todos os rastros que ainda não foram trilhados, na tua palavra e na minha, em tudo, morre um pouco, quando morre um poeta.
Tudo morre um pouco, ou morre muito, não sei dizer. Porque é como se morressem toda a beleza do mundo que ainda não foi cantada, todas as coisas que não foram ditas, todos os sentimentos que ainda não haviam sido despertados. Num instante, em que tudo se apaga e a megera de todas as coisas se instaura, gritante, gargalhante, escarnecente, torturante, o espírito do Homem se desguarnece do que lhe sustenta e cai, patético e imoral, objeto de chumbo e palha esfacelado no chão. O chão se abre, engole-o e se fecha, e o mastiga com seus dentes de magma. A humanidade morre junto com o poeta por um instante, mas não a morte deste. Ela morre como quem perde tudo, absolutamente.
Nesse instante, nesse átimo antes das coisas da vida se restaurarem nas veias das cidades, o negror de nossa pequena e frágil condição sobre a Terra nos visita. Porque, sem o poeta, não seríamos mais que relógios, máquinas de ponto, placas de silício e armadilhas para peixes. A nossa ausência nos olha no fundo dos olhos, e essa marca fica. Pesada, cruciforme, cancerosa.
Então, as passadas seguem e a vida volta às suas tramas, voltamos às nossas casas e abrigos. Como se nunca nos houvéssemos visto sem pele sob uma chuva de navalhas. As placas de silício voltam a conduzir impulsos elétricos. As armadilhas capturam normalmente. As máquinas de ponto marcam mais um dia. Os relógios tiquetaqueiam.

31/10/05

Mário Gomes

Texto de Mário Gomes (clique no nome do poeta para acessar sua página).
Fotografia de Mika Holanda (clique no nome do fotógrafo para acessar sua página).

MEDICINA

(Clique na ilustração para ampliá-la e no nome do artista, para acessar sua página)

Tenho em mim engasgos de natureza emocional.
Vejo o mundo, e ouço o mundo, e leio o mundo dentro das pessoas,
e o mundo dentro de mim quer irromper em erupções de lavas gástricas,
como Gaia parindo seus monstros.
Porém, como Gaia, que é o próprio mundo,
não consigo parir minhas palavras.
Elas germinam, crescem em textos,
enciclopediam-se em compêndios vermelhos,
encapados de paredes esofagianas
e guardam todos os segredos do mundo.
Sou doente de guardar segredos.

31/12/14

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Feliz Saturnália!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

CORPO FECHADO


Onde estiveres, não te demores.
O tempo é cruel deste lado.
Posso esperar tanto quanto a própria espera,
Mas não domino mais a arte de me transpor
E me desabitar
E sazonar pelas praias e sertões da infância,
Sendo outro que não neste corpo.
Hoje, aqui, o meu corpo é fechado, trancado,
Sem aldrabas de visitas,
E dele não saio,
E é ele que te espera, duro, rijo, seco.
Por que não deixas de ser nuvem branquinha de longes sombras
E choves?

12/12/14